Marco temporal é inconstitucional, defendem debatedores na CDH

Paulo Paim (C) e convidados da audiência; ao microfone, Antônio Cerqueira, do Cimi

Fonte: CenárioMT com inf. Agência Senado

marco temporal e inconstitucional defendem debatedores na cdh
Geraldo Magela/Agência Senado

A Constituição de 1988 não determina o chamado “marco temporal” para que um território possa ser demarcado como indígena; por isso, o PL 2.903/2023 é inconstitucional. Essa foi a tese defendida por todos os participantes de audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta quinta-feira (29). O debate foi conduzido pelo presidente da CDH, Paulo Paim (PT-RS), para quem a tese do marco temporal seria mais um atentado contra os direitos indígenas, desta vez buscando limitar o reconhecimento a territórios tradicionalmente ocupados pelas mais diversas etnias. 

— O PL 2.903/2023 determina que os povos indígenas só podem reivindicar determinada terra caso já estivessem nela no dia 5 de outubro de 1988. Mas eu fui constituinte, participei de todo o processo, e posso garantir que isso é uma deturpação, uma alteração inaceitável do espírito da Carta Magna que visa retirar os direitos dos indígenas às suas terras — defendeu Paim.

O projeto de lei que institui o marco temporal para a demarcação de terras indígenas já foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora está em análise no Senado.

Para a senadora Zenaide Maia (PSD-RN), a tese do marco temporal também se equivoca ao ignorar o necessário “caráter nômade” que teria marcado o comportamento de diversas etnias ao longo do tempo, ao deslocarem-se em busca de localizações mais propícias para plantações. A senadora entende que fixar a data de 8 de outubro de 1988 como condição para se provar a presença indígena, para que um território possa ser reconhecido como tal, tem “viés genocida” ao buscar um engessamento que não caracterizou o deslocamento histórico de diversas etnias por partes do território.

O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Cerqueira, fez coro com Paim e Zenaide ao também qualificar a tese do marco temporal como inconstitucional. Para ele, o espírito da Constituição é claro ao reconhecer os direitos dos povos indígenas a territórios tradicionalmente ocupados, sem se limitar a prazos fixos no tempo.

— A Constituição protege a tradicionalidade e a origem dos povos indígenas, e não o contrário. Portanto não há um marco temporal determinando que a partir de uma data específica poderia se reconhecer estes povos e a tradicionalidade. Essa tese (do marco temporal) fere também a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], assinada pelo Brasil, e a declaração da ONU sobre povos e direitos indígenas — defendeu.

Paim, Zenaide e Cerqueira também lembraram que os territórios demarcados como indígenas são os mais bem conservados em relação à preservação ambiental, por isso a política também seria muito benéfica para toda a sociedade, na luta contra as mudanças climáticas. Para Cerqueira, o PL 2.903/2023 é patrocinado por “setores retrógados” do agronegócio e busca dar continuidade a políticas públicas prejudiciais aos indígenas, adotadas durante o governo de Jair Bolsonaro.

Visão da antropologia

Na avaliação da presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Andréa Zhouri, o marco temporal é um “contrassenso” que nada tem a ver com as tradições indígenas.

— A ABA contribuiu diretamente nos debates sobre os direitos indígenas no processo constituinte. A Constituição foi um pacto social que reconheceu o entendimento antropológico sobre os territórios tradicionalmente ocupados por estes povos, e a definição da tradicionalidade não se relaciona a um tempo específico. A Constituição em nenhum momento diz que ela própria é o marco temporal, isso seria um contrassenso antropológico já apontado por muitos juristas. Inclusive pelo relator do processo sobre o tema no STF, Edson Fachin, e pelo ministro Alexandre de Moraes.

Andréa Zhouri acrescentou que o Ministério Público Federal (MPF) também apresentou nota técnica defendendo que o marco temporal é inconstitucional. E reiterou que a ABA considera o PL 2.903/2023 uma espécie de “genocídio legalizado”, entre outras razões pela pretensão de fixar os mais diversos povos indígenas numa relação típica do direito agrário, ignorando séculos de deslocamentos por razões culturais e de sobrevivência, incluindo a própria fuga de extermínios em massa.

O representante da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI), Eriki Terena, também criticou o fato de o PL 2.903/2023 prever a revogação de áreas já demarcadas em casos de “aculturação”.

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