No primeiro trimestre deste ano, a polícia civil de São Paulo registrou 181 casos de intolerância religiosa em todo o estado, o que pode passar longe da quantidade real, já que muitas vítimas preferem não recorrer às autoridades para prestar queixa.
O total representa 87,4% das ocorrências reportadas entre janeiro de 2019 e março de 2023, demonstrando que houve uma alta significativa ao longo dos anos, e sinalizando que as pessoas podem estar tendo mais estímulo para comunicar violências.
No relatório com os números, obtidos pela Agência Brasil pela Lei de Acesso à Informação (LAI), é possível identificar que os casos de intolerância religiosa vêm em contextos de confronto físico, tipificados como “vias de fato”, ameaças, injúria, difamação, lesão corporal, dano, ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, praticar a discriminação e até mesmo violência doméstica. Por vezes, há mais de um desses crimes indicados no boletim de ocorrência, e a reportagem optou por contabilizar como um mesmo caso.
Em duas ocorrências, as vítimas que deram parte na polícia eram adolescentes. Ambos foram ameaçados. Há ainda um caso relacionado a uma tentativa de suicídio motivada por intolerância religiosa, em Campo Belo, o que evidencia o peso que as tentativas de se doutrinar e converter alguém podem ter. Várias ocorrências aconteceram no meio da rua.
Um dos locais que sofreram ataque, em março deste ano, é o terreiro de candomblé Egbé Odé Àkuerãn, que completou 12 anos de existência e fica no bairro Jardim São José, em Cajati, município de 28 mil habitantes, a cerca de 230 quilômetros da capital paulista. No boletim de ocorrência, o que ficou documentado, com citação do artigo 163 do Código Penal, foi o dano que o agressor, um vizinho do terreiro, causou à estrutura física, ao jogar um tijolo sobre o telhado local.
Lei do silêncio
Conforme relata o babalorixá que comanda o terreiro, Eric Ty Odé, de 27 anos, esse mesmo vizinho ganhou o imóvel onde mora do próprio terreiro e tem uma esposa evangélica. Segundo o líder candomblecista, em respeito à lei de silêncio, o terreiro funciona, no máximo, até as 22h30, e que o homem nem sempre demonstrou desagrado diante dos rituais realizados, o que começou apenas recentemente. “Só não machucou as pessoas embaixo porque o tijolo ficou preso no forro”, observa o líder do terreiro.
Essa não era a primeira vez que o vizinho os afrontou. A polícia, inclusive, já havia sido acionada anteriormente, mas os boletins de ocorrência não adiantaram. Além disso, o vizinho praticava o ataque e entrava correndo em casa, o que dificultava a ação dos agentes, e chegou a intimidar os frequentadores, segundo o babalorixá.
“Até que perdemos a paciência e abrimos um processo contra ele, por danos morais e danos patrimoniais, que está correndo na justiça. Foram registrados seis boletins de ocorrência. Ele ameaçava as pessoas que iam ao terreiro, ficava armado na rua, andando para lá e para cá, chamando os integrantes da casa para ir lá conversar”, acrescenta.
Medo e perseguição
Vanessa Alves Vieira, coordenadora do Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, afirma que, de fato, muitos líderes de terreiro não denunciam os primeiros episódios de violência. Por detrás do medo de se oficializar a queixa, há também a desconfiança da postura da polícia, já que, conforme salienta a defensora pública, “há, às vezes, uma abordagem mais violenta, mais agressiva”.
Ela ressalta que, embora o órgão não disponha de estudos que comprovem a hesitação, os servidores que fazem esse tipo de atendimento a identificam nas falas dos denunciantes.
“Às vezes, as pessoas demoram para denunciar por temor, por desconhecimento dos caminhos jurídicos possíveis e também por não acreditar no sistema de justiça para lidar com essas questões, que também têm um fascismo institucional e estrutural que o permeia. Muitas vezes, há esse receio sobre quais serão esses desdobramentos, se vai ter consequência ou não”, diz ela, para quem o caso da demolição do terreiro de candomblé da yalorixá Odecidarewa Mãe Zana, em Carapicuíba, em dezembro de 2022, é uma história que ilustra o desrespeito e o apagamento que atingem as religiões de matriz africana.
O docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador Alexandre Marcussi esclarece que, quando o subtexto dos ataques não é propriamente ser contra uma religião que não pertence à linha cristã, e sim o racismo.
“Não é porque não são cristãos que os terreiros de candomblé, umbanda e matriz afro são constantemente atacados no Brasil. No Brasil, nós não temos intolerância religiosa significativa ou ataques contra praticantes do budismo, por exemplo, que também não são cristãos, mas não sofrem esse tipo de tratamento [de hostilidade]. Não é exatamente o fator religioso que está por trás. As religiões como umbanda e candomblé são atacadas porque estão historicamente associadas à África e à população negra. Por isso que a gente fala nesses casos, não apenas em intolerância religiosa, mas em um racismo religioso, porque a motivação é racial, de preconceito racial”, diz Marcussi.
Ele explica que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os ideais de inferioridade racial, que exaltavam os brancos, deixaram de ser aceitos e, com isso, deslocou-se o racismo de um campo para o outro. Assim, o racismo assumiu apenas uma nova roupagem. Como afirma o professor da UFMG, o que era um repúdio por questões biológicas, como a cor da pele, se transforma em um repúdio cultural.
Marcussi ainda destaca que a relação entre as religiões de matriz africana e a sociedade brasileira sempre foi conflituosa. “Elas eram proibidas na época do Brasil colonial, foram permitidas durante o império, mas tratadas sempre de maneira inferiorizada e foram enquadradas criminalmente no início do período republicano, no final do século XIX, início do século XX. Muitas dessas práticas eram criminalizadas, alegando-se que eram formas de curandeirismo, charlatanismo, etc. A relação da sociedade e do Estado brasileiro com essas religiões sempre foi muito conflituosa”, afirma o docente, cuja produção acadêmica orbita em torno de temas como o pensamento social africano, Brasil colonial e religiões afro-brasileiras.
Vida de sacrifícios
Eric Ty Odé recebeu, há pouco tempo, o título de Doutor Honoris Causa por sua contribuição à sociedade, em virtude dos conhecimentos sobre religiões de matriz africana. Casado com uma mulher que exerce a função de yakekerê (ou mãe pequena) do terreiro, figura que o auxilia nas tarefas, ele diz ter consciência de que ser babalorixá significa abdicar de, basicamente, todos seus planos pessoais, a fim de se dedicar exclusivamente ao funcionamento do terreiro.
“Vou te falar a realidade: a gente abdica da vida da gente para poder cuidar das pessoas e do orixá. A minha história começa aos 13 anos de idade, quando fui visitar um terreiro de umbanda, que era esse do meu avô. Eu nunca tinha ido. Então, achava aquilo fantástico. Ele tocava às sextas-feiras, pessoal de umbanda tem mania de tocar em dia de sexta. Ficavam na rua eu e meus amigos. A gente ficava ouvindo o barulho dos atabaques. Muitas vezes, a gente via meu avô passando, incorporado, pela garagem. E a gente falava…nossa, que legal, aquela coisa satânica, como o povo diz. E eu falei, um dia eu vou para ver isso, como é falar com o diabo. Porque a sociedade implanta na vida da gente que o terreiro é coisa do diabo”, relata.
O terreiro Egbé Odé Àkuerãn começou, conta Eric Ty Odé, a receber as pessoas em um banheiro. Até chegar ao estágio em que está hoje, de um barracão, levou certo tempo e uma dose a mais de fé. Já chegou a reunir filhos de santo debaixo de um pé de manga, que era onde dava, na época.
Filho de Iansã e Oxóssi, o babalorixá afirma que nunca teve empecilhos com autoridades locais para abrir e registrar formalmente o terreiro, o primeiro de candomblé da cidade onde vive e ao qual vão autoridades da cidade, que apoiam as ações sociais que articula. Contudo, ele comenta que demorou para que os responsáveis pela regularização do local compreendessem que estaria sujeito às mesmas regras de templos ou igrejas de outras vertentes.
“Como é o primeiro, não sabiam como colocar nos documentos. Eu falei, não, a documentação é como se fosse de uma igreja, um templo religioso, normal. ‘E a gente vai precisar cobrar imposto?’. Eu disse, não, isso é tudo conforme um templo religioso de qualquer igreja. Falaram, tá bom, a gente já conseguiu entender”, lembra ele, que iniciou as atividades estando à frente de um terreiro de umbanda, religião de seu avô, que teve o seu próprio em Carapicuíba, interior de São Paulo, por 52 anos.
Eric Ty Odé recorda-se de sua primeira gira, que provocou encantamento com a umbanda. “Ali eu achei o meu lugar, porque eu fui a várias igrejas evangélicas e nunca me encontrava. Comecei a frequentar a umbanda. Com um ano, o meu avô incorporava uma entidade chamada Zé Pelintra e o Zé Pelintra disse, olha, meu filho, não tem mais muito tempo de vida aqui nessa terra e você vai cuidar disso aqui para ele. Você já pode começar isso agora. E eu encarei aquilo como um desafio, e eu adoro desafios. Comecei. Auxiliava, perguntava, onde põe essa vela, essa bebida? Como vai ser? Como não vai ser? Me ensina a abrir e fechar trabalho? Depois, eu conheci o candomblé, depois de uma visita que eu fiz. Aí, eu vi que a umbanda me completava 80% e o candomblé, 100%”, afirma.
“O orixá determinou que a gente deveria se mudar da cidade de Carapicuíba para Cajati. Um desafio. Ele falou que seria aqui que eu iria construir meu nome, a minha história. Cheguei aqui, não tinha terreiro, nada. O único pai de santo da cidade”, adiciona.
Contribuição ao racismo
Obter a papelada para assegurar o funcionamento dos terreiros é um dos principais obstáculos impostos por quem os marginaliza ou tenta marginalizá-los, ao mesmo tempo que se deixa de cobrar alvará de igrejas católicas e evangélicas, alerta o presidente do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), Hédio Silva Júnior.
Ele cita, como exemplo, um caso recente que atendeu, no interior de Minas Gerais, em que a prefeitura proibiu o terreiro de umbanda de realizar rituais para Exu, orixá muito associado ao diabo, por quem desconhece as religiões de matriz africana e que busca desqualificá-las.
Ele afirma, ainda, que “a destruição do outro” sempre existiu no âmbito das religiões de matriz africana no Brasil, e que, à medida em que elas avançam e reivindicam legitimidade, há reações. Realmente, quanto mais [avançam], ainda que em um nível de organização, de defesa, de afirmação de direito incipiente, há uma contrapartida, uma resposta a isso. Agora, eu diria que, na verdade, o problema fulcral é que a intolerância religiosa no Brasil cresce absurdamente, e o que impressiona é que é envernizada por uma aura de naturalidade. Essa é que é a questão central”, pondera.
Como estratégia de enfrentamento ao racismo religioso, muitas lideranças religiosas acabam adotando nomes como “casa espírita” para, de certa forma, disfarçar a natureza dos rituais que ali são realizados, pois quem procura na internet, por exemplo, pode achar que se trata de uma casa ligada ao espiritismo kardecista. Nem mesmo isso funciona, em alguns casos, para que os terreiros se protejam dos ataques.
Há diversos modos de perseguição, que podem partir das organizações e o Estado, fazendo com que o racismo institucionalizado também ganhe forma. “A intolerância religiosa não distingue nem por cor, nem por segmento religioso, é todo mundo macumbeiro. Vejo terreiros localizados em área rural, com vizinhos a uma distância significativa, de 100, 200, 300 metros, havia até com 400 metros de distância da chácara e o cara vai reclamar”, diz Hédio.
“Primeiro, a instrumentalização do Estado, e aí isso se aplica a conselho tutelar. A gente teve casos de grande repercussão, de pais que perdem a guarda de filhos porque são da umbanda e do candomblé. Você tem vizinho que aciona a polícia, a prefeitura, agente fiscal e se vale, pretende valer da legislação. E aí eu sempre digo, as religiões afro-brasileiras têm que levar em consideração esse aspecto, que a lei é aplicada com muito mais rigor, e aí você tem que considerar que o país é racista”, declara.
Hédio acrescenta que “há um aparelhamento da máquina pública preocupante, porque corrói a democracia, e há, certamente, uma aplicação seletiva dessa legislação. Essa legislação tende a ser, não por coincidência, mais rigorosa com os templos de religião afro-brasileira, isso é verdade”, completa.
Para o presidente do Idafro, “a demonização é exclusivamente direcionada às religiões afro-brasileiras”. “E o problema é que a violência simbólica, a violência verbal, da palavra, ela incentiva a violência física”, argumenta.
A Agência Brasil pediu posicionamento da Secretaria da Segurança Pública sobre qual a postura que os policiais devem assumir ao atender um chamado de intolerância religiosa, mas não teve retorno até o fechamento desta matéria.
Edição: Kleber Sampaio