Pessoas vacinadas no passado contra a varíola teriam alguma proteção contra a varíola do macaco (monkeypox) no surto atual? Esta é uma pergunta que tanto cientistas como a população tem se feito desde que o maior surto da doença começou, em maio deste ano, e se espalhou por mais de 80 países.
A varíola é uma doença que matou cerca de 500 milhões de pessoas ao longo da história e foi declarada erradicada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 1980, graças aos esforços globais de vacinação iniciados anos antes.
Naquela mesma época, um primo do vírus causador da varíola começara a infectar humanos: o monkeypox. Menos letal, o vírus se tornou endêmico em alguns países da África, como a Nigéria e a República Democrática do Congo.
O único surto fora do continente africano até então havia sido nos Estados Unidos, em 2003, com 47 casos confirmados em seis estados. A causa foi um carregamento de roedores importados de Gana.
Um dos primeiros indícios de que a vacina contra a varíola pode ter algum efeito contra o vírus monkeypox pôde ser observado naquela ocasião, lembra a virologista Clarissa Damaso, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro Comitê Assessor da OMS (Organização Mundial da Saúde) para Pesquisa com o Vírus da Varíola.
“Claramente se via que, em uma mesma casa, pessoas que tinham sido vacinadas contra a varíola faziam um quadro mais brando, com menos lesões do que as crianças ou outras pessoas não vacinadas, por exemplo.”
Ela acrescenta que na Nigéria e na República Democrática do Congo, “a maior parte das pessoas que contraem monkeypox também está abaixo de 40 anos”, justamente quem nasceu após a erradicação da varíola e, portanto, quando já não havia mais vacinação.
Com o passar dos anos, as vacinas antivariólicas deixaram de ser fabricadas no Brasil – e também em boa parte do mundo –, já que não fazia mais sentido imunizar pessoas contra um vírus que havia desaparecido.
Estrategicamente, países como os Estados Unidos mantiveram estoques desses imunizantes por medo de um ataque biológico. É justamente o estoque que tem sido utilizado neste primeiro momento para tentar frear o surto de varíola do macaco.
Clarissa conta que o Brasil aplicou vacinas contra a varíola em forma de campanha anual até, mais ou menos, 1975.
“Aqui, usava-se muito a pistola, que é um injetor da vacina. Eram [repetidas] todo ano aquelas campanhas. Eu lembro que íamos para a escola pública, ficavam vacinando no sábado, domingo, aquelas filas enormes de crianças…”
Com base na idade, é possível deduzir se você tomou ou não a vacina, mas há outro detalhe mais específico, acrescenta a virologista.
“Tem como saber, é pela famosa pega. A pega é uma marca deixada pela vacina antivariólica quando se usa vacina de vírus replicante, como é o caso da ACAM2000 atualmente, e como era o caso de todas as vacinas antivariólicas que eram dadas na época. O vírus replica na pele da pessoa no local da inoculação, fica aquela pústula maior do que as de monkeypox, por conta do jeito que é aplicada. Depois que cicatriza, fica a marca, que a gente chama de pega. Em inglês, é o take.”
Segundo a especialista, essa marca geralmente é no braço esquerdo, tem aproximadamente 2,5 cm, e representava uma espécie de carteira de vacinação contra a varíola antigamente.
Além disso, quem tem a cicatriz desenvolveu – pelo menos naquela época – anticorpos contra o vírus da varíola e os do mesmo gênero, os orthopoxvirus, que inclui também o da varíola bovina (cowpox) e o vaccínia, por exemplo.
A virologista pontua que a cicatriz da vacina antivariólica é maior do que a da vacina BCG, contra a tuberculose, aplicada no braço direito, e que muitos jovens têm.
Como o vírus da varíola desapareceu e o monkeypox só teve agora um surto de extensão global, existe uma escassez de informações acerca da duração da imunidade conferida pelas vacinas e do grau de proteção delas contra diferentes orthopoxvirus.
“O dado hoje de não ter tantas pessoas mais velhas infectadas também sugere que possa estar havendo algum tipo de proteção. Mas é muito cedo [para afirmar algo]. A população que ainda está sendo acometida são jovens, dificilmente isso ainda foi posto à prova de verdade. Espera-se que algum grau de proteção seja conferido pela vacina, mesmo sendo um tipo diferente, mas não se sabe se uma proteção total, parcial e muito menos com longa duração”, explica pediatra infectologista e membro da diretoria da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) Renato Kfouri.
Um estudo publicado recentemente na revista científica The New England Journal of Medicine demonstrou que a idade média dos pacientes com monkeypox era de 38 anos.
Outro ponto que precisa ser observado, segundo Clarissa, é a quantidade de doses que cada pessoa tomou no passado. Para alcançar o mesmo nível de imunidade conferido pela doença, eram necessárias três doses.
Dessa forma, muitas pessoas que nasceram a partir de 1975 podem ter tomado apenas uma ou duas doses.
A ausência do contato com um vírus ao longo dos anos também faz com que o efeito das vacinas seja perdido com o tempo, salienta a pesquisadora.
“Sabemos que toda a nossa imunidade é construída não só com as vacinas que já tomamos, mas também pela exposição ao patógeno na nossa vida.”
Ela cita, por exemplo, o surto de sarampo no Brasil, em 2019, quando pessoas vacinadas começaram a ser infectadas por um vírus que havia sido declarado erradicado do país cerca de três anos antes. Naquela época, foi necessário imunizar novamente uma parcela da população.