O ano era 1985 e os desafios de trabalhar com proteção a vítimas de violência doméstica eram ainda maiores do que atualmente, quando existe uma legislação específica para atuar na proteção às vítimas. Pioneira nas ações de enfrentamento à violência doméstica em Mato Grosso, a delegada Miedir Santana encarou o desafio de implantar a primeira Delegacia Especializada de Defesa da Mulher no estado e viu no dia a dia da unidade policial, instalada na Capital, como seria enfrentar toda sorte de preconceitos, de obstáculos e também de auxílios recebidos para dar voz a centenas de mulheres que procuravam ajuda e acolhimento na delegacia.
Hoje, a delegada aposentada vê que o embrião que implantou há 35 anos deu frutos e chegou à primeira Delegacia 24 horas para atendimento a vítimas de violência doméstica e sexual, inaugurada nesta terça-feira (08.09), em Cuiabá, e uma das primeiras no Brasil. Miedir Santana foi uma das homenageadas no evento, idealizado pela primeira-dama do Estado, Virgínia Mendes, que angariou recursos com parceiros e voluntários para equipar a nova unidade policial.
“O que falar em uma data como essa. Meu coração está radiante. Foi uma estrada longa e cheia de obstáculos. Outras mulheres caminharam esse caminho e trouxeram esse benefício”, destacou ela ao abrir a solenidade de inauguração.
Mesmo aposentada, a delegada não deixou de atuar no combate à violência doméstica. Há quase vinte anos foi convidada para implantar a Casa de Amparo à Mulher na Capital. “Tenho muita gratidão a todos, porque quando me aposentei chorei, mas não era porque estava saindo da Polícia Judiciária Civil, mas sim porque tive consciência de que não andei na vontade perfeita, mas na vontade permissiva de Deus, que me permitiu agir e atuar com alma e coração em defesa daqueles que precisam de nós”.
Intuição
Em 1985, o então secretário de Segurança Pública Oscar Ribeiro Travassos convidou a delegada para dar início à implantação da Delegacia da Mulher. Miedir conta que então manteve contato com o Conselho Feminino, em São Paulo, presidido pela deputada Ruth Escobar e daí em diante iniciaram-se os trâmites para criar a nova delegacia. Em dezembro de 1985 foi criada pela Lei 4.965 a Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Cuiabá.
Sete meses depois, a delegada Miedir e sua equipe começavam a trabalhar na unidade, instalada próxima à feirinha da mandioca. “Estava dando meus primeiros passos, cheia de medo e complexada. E só tinha um caminho a seguir, aquilo que vinha na intuição, pois as nossas leis não atendem aos nossos objetivos. Temos que ir além, com alma e coração em defesa daqueles que precisam de nós”, pontua ela.
No primeiro caso que atendeu na Delegacia da Mulher, ela já deu de cara com o preconceito de gênero e de raça. Ser mulher, negra, policial e enfrentar a violência de gênero em uma época que este assunto sequer era debatido. “Entrou um homem muito bonito e perguntou: ‘Você que mandou me intimar, além de mulher, ainda negra?’. E levantou pra sair. Eu tinha um revólver sem bala, que nunca tive tempo de aprender a atirar. A perna tremia.
Tinha um revolver sem bala, que nunca aprendi a atirar – a perna tremia – mas disse para ele, com muita valentia: se der um passo, te crivo na bala. Ele me disse, ‘Você está nervosa?’ Não, eu estou com raiva. Porque se for homem, dá um passo que eu te derrubo. Eu ia jogar o revólver na cabeça dele”, relembra a delegada, que depois ainda disse ao agressor: “Atacar uma autoridade que está aqui para ajudar você e sua família? E ele começou a chorar”.
Cada história é uma história
A experiência, a vivência e as histórias de cada pessoa que passou pela Delegacia da Mulher ensinaram na construção do percurso e da compreensão do trabalho. “Foi nos ensinado que precisamos mudar a forma de atender. Cada caso é um caso, cada história e uma história. Lá atrás não tinha Lei Maria da Penha, botão de pânico e medida protetiva”, recorda.
Em outro caso atendido pela delegada, um homem chegou e disse que ia matar uma mulher. “E eu falei a ele: você vai perder, você vai ser preso, mas ele disse: ‘mas eu vou matar’. Eu não sabia o que fazer. Fui ao juiz pedir uma orientação, que me disse: ‘juiz não orienta, juiz decide. Me vi sozinha, contra o mundo”.
A delegada relembra que decidiu indiciar o agressor, após deixá-lo três dias preso. “Não dormi, cheguei cedo no outro dia na delegacia, cinco e meia mandei chamar. “Naquela época era BIC e o dedo dele ficou sujo, e quando ele saiu para conversar comigo, peguei um pano molhado e comecei a limpar os dedos dele. E disse: está vendo, você está marcado, sua vida vai piorar, você quer matar uma mulher que não te ama mais. E comecei a limpar os dedos dele e ele olhou para mim, com muito carinho e disse: ‘ não vou mais matar ela’.
Ele foi embora para o sul do País e depois enviou uma carta à delegada Miedir, que ela guarda até hoje, como uma recordação de uma vida que ajudou a salvar. A mensagem dizia: “sua simplicidade me fez entender meu erro”.
“É necessário uma mudança de cada um de nós para defender uma vida”, finalizou a delegada Miedir Santana ao destacar que a solidariedade, empatia e preocupação devem fazer parte das políticas para, também, auxiliar o agressor e propor uma mudança de comportamento.