Marido, filhos, médicos: o drama da mulher que enfrentou o abandono ao ser diagnosticada com câncer de mama

Fonte: OLHAR DIRETO

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Foto: Olhar Conceito

“Ele chegou, sentou perto de mim e perguntou: o que você tem? Eu mostrei os papeis pra ele e falei: eu vou morrer. Estou com câncer. Ele olhou, juntou os papeis, colocou em cima do meu colo no sofá e foi para o quarto. E eu ainda pensei, ‘coitado, foi chorar e não quer que eu veja’. Até hoje eu tenho raiva de mim por isso, por ter tido dó dele. Passou vinte minutos, ele passou perto de mim com uma mala, mas não falou se ia embora, nada. Só passou, e nem me olhou. Subiu no caminhão, e até hoje… nunca mais. E eu fiquei ali, sem saber o que fazia da minha vida”.

Já se passaram dez anos desde o dia da cena narrada pela mato-grossense Ester Santos Viana, mas a memória do abandono continua intensa em sua mente. Foi na noite seguinte às suas bodas de palha – 23 anos de casamento – que o marido chegou em casa, ouviu seu relato, e foi embora. Foi morar com uma amiga dela, com quem já tinha um caso há algum tempo. Funcionária de um cartório, casada desde os 16, com três filhos, ela simplesmente estava sem chão.

A descoberta do câncer de mama aconteceu por acaso. Todos os dias, respondia às enfermeiras da carreta do Hospital de Câncer de Barretos – que estava passando por São José dos Quatro Marcos – que estava com pressa para chegar em casa e preparar o jantar para a família. No último dia, decidiu parar. Em trinta minutos fez uma mamografia, um ultrassom e uma punção. O resultado do exame chegou 15 dias depois, nas mãos de sua ginecologista – que já tinha reparado no carocinho, mas afirmava ser leite empedrado – mesmo que Ester tivesse dado à luz pela última vez quinze anos antes.

Ela foi até o hospital sozinha. Recebeu a notícia de ‘supetão’. “Ela falou: você está com câncer. A resposta foi: câncer? Mas então eu vou morrer. Foi só isso que eu falei. Sabe quando você acha que o poço não tem fundo? Vai caindo, caindo… eu perguntei: quantos dias e vou viver, doutora? E ela falou que não podia falar, que eu precisava procurar um especialista”.

Ester saiu do consultório, e não se lembra mais de nada. Depois soube que sentou-se na sarjeta e se debulhou em lágrimas, até ser levada para casa por um amigo de sua filha. Ela não quis contar à família a notícia antes que seu marido chegasse – ele, caminhoneiro, estava viajando – e esperou até o dia seguinte. Quando deu a notícia, foi deixada. Depois que ele foi embora, Ester passou três dias chorando, e decidiu que precisava ir atrás da cura.

Abandono

Ester não é a única mulher abandonada em uma situação crítica como o câncer de mama. Recentemente, Fernanda Chahin, fundadora da ONG ‘Mamas do Amor’, falou em uma entrevista à rádio CBN que mais de 70% das mulheres diagnosticadas com a doença passam por isso. Apesar de não ter citado a fonte científica, basta uma pequena busca – no Google ou na vizinhança – para perceber que isso é realmente comum.

Para a socióloga Silvana Maria Bittencourt, doutora em sociologia política pela UFSC, que pesquisa estudos de gênero e saúde do corpo, e professora da pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o trabalho do ‘cuidar’ sempre foi desenvolvido pelas mulheres – e nunca foi valorizado.

“Ele é potencializado pelas mulheres, e muitas vezes é naturalizado, visto como feminino. Na própria questão da segregação das carreiras profissionais, todas as profissões vinculadas ao cuidado, como pedagogia, enfermagem, nutrição, tem uma incidência bem maior de mulheres”, explica. “O trabalho de cuidar não foi democratizado. Muitas vezes, quando os pais adoecem, quem vai cuidar é a filha mulher, que é também quem cuida dos filhos”.

Os homens, então, não foram socializados para aprender a cuidar, desde a clássica divisão de brinquedos: bonecas para meninas e carrinho para meninos. Eles podem simplesmente se sentir perdidos ou achar que a responsabilidade não é sua quando a esposa fica vulnerável, além de não conseguir cuidar mais dele, será ela quem precisará de cuidados.

A busca pela cura

Depois de enxugar as lágrimas, Ester deixou seus três filhos – de 15, 17 e 19 anos – com a avó paterna, e foi para Cáceres, sozinha, em busca de tratamento. Conseguiu R$3 mil com seu padrinho para refazer os exames, já que os que tinha feito na carreta não seriam aceitos pelo Hospital Regional da cidade. Mas não adiantou. Teve que seguir viagem até Cuiabá, onde passou a morar de favor na casa de uma amiga, e esperou seis meses para conseguir refazer – pela terceira vez – a mamografia pelo SUS.

Neste meio tempo, seu seio já estava inchado e sangrando. A mãe, que morava na Espanha com seu irmão, mandava dinheiro para que ela se mantivesse na capital, e, no meio disso tudo, ela perdeu até mesmo o apoio de seus filhos. “Todos os parentes do meu ex-marido ficaram contra mim, porque são evangélicos e o pastor, quando aconteceu tudo que eu vim para Cáceres, falou que Deus tinha revelado para ele que tudo era um disfarce que eu tinha feito para arrumar outro homem. Pra eles, a culpa foi toda minha”. Os filhos também acreditaram na história do pastor – e foi só oito anos depois de Ester ter descoberto o câncer que eles voltaram a se aproximar.

Ester passou pela cirurgia de retirada da mama e para ajudar a cuidar dela, a mãe voltou da Espanha. Depois da operação, ela ainda passou por 28 sessões de quimioterapia. Seu cabelo já estava caindo quando, numa tarde, sentada em uma praça de Cuiabá, ela teve seu primeiro contato com o MT Mamma, por meio do voluntário Bruno.

“Ele veio rindo para o meu lado… e eu tinha pegado raiva dos homens depois de tudo aquilo. Ele chegou e falou: ‘bom dia’. E eu respondi: ‘só se for pra você’. Eu era amarga mesmo. Ele contou da associação, e eu dei um grito: ‘sai daqui… já to passando por isso e você já vem falar dessa doença’. Eu mostrei para ele que estava sem peito. E ele disse: ‘é de você mesmo que a gente precisa’. Já gritou a Maria Helena, que era psicóloga. Ela veio do meu lado, mas eu não falava nada, só chorava”, lembra.

Com ajuda da associação e da mãe, Ester conseguiu alugar um quartinho com cama e geladeira. Ela também passou a ocupar o tempo com atividades diversas. “Eu fui vivendo mais, porque eu passava o dia inteiro com eles, fazendo coraçãozinho, artesanato, fui esquecendo um pouco da doença”.

As sessões de quimioterapia acabaram, e ela conseguiu emprego, também por meio da associação. A reconstrução da mama, no entanto, só aconteceu em 2011, pelo SUS, o que prejudicou sua autoestima, e lhe fez até mesmo concordar com o marido. “Eu usava três blusas. Uma fininha, por baixo, de alcinha, com o sutiã que eles dão no hospital, outra blusa e uma mais larga por cima, para ninguém perceber que eu não tinha peito. Eu tinha muito medo de, se arrumasse um namorado, eu tirar a roupa e ele sair correndo. E eu acho que o marido já tinha largado já pensando nisso… porque você olha no espelho e fica feia demais. A primeira vez que eu olhei no espelho eu pensei, não, e dou razão para ele, porque fica feio demais”, lembra.

Esta é, para a socióloga Silvana, outra hipótese para a razão do abandono. “Somos uma sociedade que valoriza a juventude, valoriza a beleza e o aspecto da mulher enquanto corpo reprodutivo. Uma mulher que teve uma parte de seu corpo lesada, marcada [não é vista como atraente], porque tem toda a questão da representação que tem esse corpo. E existe [também] uma masculinidade muito vinculada a valorizar este tipo de corpo. E isso é cultural”, explica.

Tudo de novo

Um ano depois de ter feito a reconstrução da mama, enquanto ainda tomava a medicação e fazia acompanhamento, Ester descobriu que o câncer havia atingido também seu seio direito. “Mas eu já estava mais forte, estava com a cabeça mais firme. Não sofri tanto, porque eu já tinha quem me orientasse”.

Da segunda vez, a retirada não precisou ser total, e foram necessárias quatro sessões de quimioterapia e cinco de radioterapia. “A radio queimou muito… a quimio só dava mal estar, mas logo passava. Agora, a radio ficava cheio de feridas. Porque tinha que comprar um monte de cremes, e eu não tinha o dinheiro para tudo aquilo, então foi ferindo. Foram cinco sessões de radio, mas ficou tudo preto. Até hoje meu pescoço tem mancha preta, de tanto que foi forte”.

Um ano depois, acabou o tratamento. No entanto, os remédios continuam por dez anos, com consultas a cada três meses. Em 2022 ela poderá, finalmente, falar que está curada.

A relação com os filhos ficou abalada por muitos anos – ela não foi nem mesmo ao casamento do mais novo. Hoje, os três já pediram perdão, e há cerca de um mês o caçula visitou a casa da mãe, em Cuiabá, pela primeira vez. “Eles falaram: ‘a gente achava que a senhora estava errada, porque o pastor falou’. E eles acreditaram… eu acreditei no médico, e eles acreditaram no pastor da igreja”, lamenta.

Há quatro anos, o marido também pediu perdão – e o divórcio, para casar com a ex-amiga de Ester. Hoje, seu seio foi reconstruído. Os cabelos cresceram. Ela apoia outras mulheres na associação que também lhe acolheu. A insegurança, no entanto, é sua companheira. “Até hoje eu penso onde foi que eu errei. Se era excesso de cuidado”, questiona. “E isso me atrapalha em outros relacionamentos, porque eu fico com medo de fazer tudo o que e fazia, e eles irem embora de novo”.
Sou Dayelle Ribeiro, redatora do portal CenárioMT, onde compartilho diariamente as principais notícias que agitam o cotidiano das cidades de Mato Grosso. Com um olhar atento para os eventos locais, meu objetivo é informar e conectar as pessoas com o que acontece em suas cidades. Acredito no poder da informação como ferramenta de transformação e estou sempre em busca de trazer conteúdo relevante e atualizado para nossos leitores. Vamos juntos explorar as histórias que moldam nosso estado!