A maioria das testemunhas que prestaram depoimento na audiência de instrução na Vara de Militar do Fórum de Cuiabá, sobre o caso Abionão, relatou que era um fator tradicional “pegar mais pesado” com alunos que vinham de outros estados tentar vaga para ser militar em Mato Grosso.
Segundo os depoimentos, os oficiais que comandavam o Curso para Tripulante Operacional Multi-Missão (TOM-M), em abril de 2010, tinham um rigor maior com alunos que eram de outros estados. Chamados de estrangeiros, eles eram submetidos a sessões de afogamentos, chamado de “caldos” quando o treinamento era na água. E foi numa dessas ações que Abinoão Soares de Oliveira, policial Militar das Forças Especiais do Piauí, morreu afogado no lago do Manso durante o quarto dia de curso.
“Eles falavam que não eram para estrangeiros se formar. Eles afundavam a cabeça dos alunos na água, ou puxam pelas costas e ainda riam quando alguém voltava sem ar”, disse uma das testemunhas.
Ao decorres das testemunhas, os militares que participaram do curso naquele ano assistiam calados no auditório da 11ª Vara Militar. Ao total, 17 policiais do Bope, Ciopaer e Corpo de Bombeiros respondem o processo por tortura seguida de morte contra o soldado Abinoão.
Uma das testemunhas relatou que “os caldos eram comuns. Assim como despertar com barulhos de bombas e poucas horas de sono”. Quanto aos estrangeiros, a testemunha disse que a perseguição era maior.
“O Abinoão era um aluno dedicado. Além disso ele era de fora, então sofria mais. Muito mais. Os caldos eram constantes. Quando o treinamento era na água, eles afundavam a cabeça dele e diziam que estrangeiros não se formariam”, concluiu.
Outra testemunha contou que após detectar que Abinoão estava desacordado, um dos militares chegou a dizer: “Olha ai, o guerreiro está fingindo que apagou”, contou. E só depois de algum tempo o tiraram da água, juntamente com outros dois que também eram de outro estado, e começaram o processo de reanimação.
“Os alunos que detectaram que o Abinoão estava com a pele pálida e lábios roxos. Ai outros dois também estavam desacordados. Tiraram eles da água e começaram a reanimar. Os outros dois acordaram, já Abinoão teve de ser trazido para Cuiabá para ser atendido no Pronto Socorro”, contou a testemunha que ainda relembrou um fator importante em seu depoimento. “Havia uma satisfação dos instrutores quando algum aluno desistia. Por isso eles forçavam. Quando Abinoão desmaiou, um deles disse: eu falei que ia formar”.
Uma terceira testemunha saiu em defesa do curso e disse que nenhum policial ali sai de casa para torturar o aluno. “Ver um colega morrendo é óbvio que te deixa indignado. A instrução é necessária para definir quem é capacitado. Não senti que houve intensão de torturar. Acredito que ninguém faz o curso para torturar ninguém. Acho que houve excessos e faltou técnicas nesse dia do curso”, declarou.
Família comemora
Um dos filhos de Abinoão, que na época da morte do soldado tinha 15 anos, Anderson Mateus Mota de Oliveira veio de Alagoas acompanhar a audiência sobre o acontecido com seu pai. Segundo ele, apesar de ter passado quase dez anos para o caso ter andamento, a família comemora muito os passos do processo.
“Todos estamos muito felizes pelo julgamento. A defesa tentou protelar mais um pouco, mas logo o juiz percebeu que não existe mais o que esperar e por isso é importante julgar. Agora estamos esperançosos e que seja feita a justiça dos homens”, disse Andeson.
O rapaz conta que o pai era um policial exemplar e dedicado. Ele fazia parte do Bope do Piauí e também da Força Nacional. Pela graduação, ele tentou uma vaga no Ciopaer de Mato Grosso mas acabou pagando por sua própria boa conduta.
“Meu pai ajudava o próximo. Se ele percebesse que algum colega de farda estava precisando de ajuda, ele parava o que ele estava fazendo para ajudar. Ele sofreu por ter boa conduta e também por ser de fora. Agora não tem como voltar no tempo, mas acredito que por meu pai ser bom ele sofreu mais aqui”.
Segundo o Ministério Público, Abinoão, ou soldado 14, como foi identificado no curso, era um profissional multifuncional, mas acabou sendo alvo de perseguição. A denúncia de tortura relata que o soldado tinha bom desempenho embaixo da água, mas recebeu diversos caldos e acabou sendo preso embaixo d’água de forma que não conseguia subir. “Mesmo os colegas percebendo a ação criminal, os instrutores continuavam e só cessou porque ele não submergiu sozinho”, diz trecho da denúncia contra os 29 policiais que participaram da instrução do curso.
Destes, 12 foram denunciados e respondiam apenas por tortura, mas em 2019 foi extinta a punibilidade e agora apenas os outros 17 respondem pelo crime.