“Lembro do dia em que recebemos a primeira paciente com suspeita de covid (depois ela testou negativo): era junho de 2020; estamos apreensivos; há dias treinando e discutindo como agir. Fui eu que a atendi. Naquele momento, também fiquei apreensiva, mantive distância dela; vi no olhar dela o medo também. Nós, literalmente “escondemos” os pacientes que estavam na UPA, tiramos todos dos corredores e a levamos para o raio-x”.
O relato integra as memórias da coordenadora de enfermagem da UPA Sara Akemi Ichicava de Sorriso, Janaína Cagnani Brasileiro, em mais de um ano de combate à pandemia.
É diante da tela do computador em que visualiza o estado de cada paciente que Janaína relembra um pouco dos mais de 460 dias na linha de frente. “Desde março estávamos nos preparando; todo dia era aquela sensação: como será se alguém positivar? Então recebemos a paciente na unidade em junho; o exame dela retornou negativo, mas despertou o alerta geral: começou, precisamos intensificar os cuidados e ser fortes para amparar quem chegar até aqui”, relata.
Para a “Jana da UPA”, como ficou conhecida “depois de tanto andar defendendo e mostrando o trabalho da nossa unidade”, como ela mesma diz, esse período tem despertado várias emoções.
“No sábado chegamos a triste e lamentável marca de 500 mil vidas perdidas no país; 204 delas de sorrisenses, essas pessoas passaram aqui ou no Hospital de Campanha Municipal, estiveram nos hospitais regionais de todo o Estado e não conseguimos ver elas segurando a placa de “eu venci a Covid-19”; sentimos a dor de cada família”, frisa ao pontuar uma corrida por atendimento para os pacientes; instalações e credenciamentos de leitos de UTI pelo Estado e país afora.
Jana conta que a perda da técnica de enfermagem Juceli Pereira da Costa, a “Juce”, aos 37 anos ainda dói e mexe com a equipe. “A Juce e o esposo trabalhavam aqui; quando ela passou mal e precisou ser internada, ela queria permanecer aqui, onde trabalhava e conhecia a equipe. Fizemos o que podíamos pela Juce, mas ela teve que ser transferida; primeiro para o Regional aqui e depois precisou ser intubada em Sinop. Quando recebemos a notícia de que a Juce ainda lutado muito, mas não conseguiu vencer, desabamos”, conta.
Para Jana e a equipe, o dia sombrio, a espera pela despedida ainda são muito presentes.
“E no dia seguinte era a equipe dela que estaria aqui de plantão. Achei que eles não tinham condições de vir; mas eles me procuraram e falaram: Jana só queremos autorização para vestir preto, nós estaremos aqui pela Juce”. Foi muito forte. Ainda é”, pontua.
A enfermeira destaca ainda vozes de outros pacientes que ecoam. Como uma senhora que não queria ser intubada. Naquele dia, uma equipe composta por várias pessoas, inclusive o secretário de Administração, Estevam Calvo, visitava a UPA. “Estava guiando a visita e me chamaram; corri para o leito da dona E. (o nome da paciente será preservado) com a doutora Priscila. A família decidiu pela intubação. Intubamos, fizemos de tudo, mas não conseguimos salvar”, diz.
Na volta para a sala, Jana se deparou com os visitantes aflitos, torcendo pelo sucesso dos procedimentos. “Estava arrasada; falei que havíamos perdido a batalha, a doutora Priscila veio aqui e chorou junto – nos abraçamos quando era proibido abraçar porque estávamos ligadas pela dor e queríamos ser fortes diante da família”, lembra. “As pessoas não são números, tem rostos, voz, família, sonhos”, acrescenta.
Diante do panorama que se desenhava, Janaína e a equipe fizeram uma projeção que foi repassada à Secretaria de Saúde e Saneamento.
“Tínhamos apenas três cilindros de oxigênio, não havia chances de atender com isso”.
Conforme Jana, “o secretário Luís Fábio viu a projeção e falou “nós vamos conseguir”. Hoje nós temos essa estrutura maravilhosa que conta com um reservatório de 35 mil litros de oxigênio, um Hospital Municipal de Campanha atendendo 24 horas e uma ala de UTI exclusiva para atendimento da Covid-19 na UPA porque as autoridades acreditaram nos números que estávamos mostrando e batalharam por isso. Em nenhum momento duvidaram da capacidade da nossa equipe, do preparo e da meta de salvar vidas”, diz Jana ao citar o prefeito Ari Lafin, os secretários Luís Fábio Marchioro, Estevam Calvo, Devanil Barbosa, vereadores e todos “aqueles que viram, entenderam e respeitam o nosso trabalho”, diz.
Se as memórias tristes insistem em aparecer, Janaína também faz questão de lembrar de vitórias. Respira fundo, encosta a coluna na cadeira, chacoalha a cabeça – como quem quer espantar um fantasma que insiste em ficar presente – e sorri por trás da máscara.
“Quando vi a primeira pessoa segurando a plaquinha – que para muitos pode ser só uma folha de papel; meu coração disparou; era uma luz, era esperança”, fala emocionada.
“No início quando alguém testava positivo eu pensava: como substituir? Então enviava mensagens no grupo e logo seis, sete, até dez pessoas falavam “eu vou”. Entendi que viramos uma família e que a família da UPA estava unida para cuidar dos outros e para cuidar de si mesma”, opina. Na batalha, Jana conta com parceiros inseparáveis, como o colega de trabalho Alex Roberto Pinheiro, o “Alex da UPA”, que desde o início do combate divide as dores e conquistas com a colega. Além do Alex da UPA, Jana cita o companheirismo do coordenador de Atenção Especial em Saúde, Matheus Leandro Freiria; o ex-coordenador da unidade, doutor Fábio Júnior; a atual responsável, a médica Francieli Guarnieri e toda a equipe. “Sem a coordenação, os médicos, recepcionistas, técnicos, zeladores, equipes de plantão de enfermagem, fisioterapia, enfim, sem a nossa família e o apoio que recebemos de fora, não teríamos vencido tantas batalhas”, completa.
A instalação da Ala Covid-19 na UPA também marcou. “Saímos de um atendimento básico para hoje atender como uma emergência de verdade: desenvolvemos métodos para tornar mais eficazes os protocolos; passamos a intubar e estabilizar pacientes e dispomos da UTI se for necessário”, a mudança, segundo ela, alterou toda a forma de atendimento prestado na UPA.
Janaína também comemora a vacinação e os avanços da ciência. “Nunca imaginei quando era acadêmica, que passaria por uma crise sanitária dessas. Sempre tive muito interesse pela área sanitarista, buscava saber sobre a Gripe Espanhola, a Peste Negra, mas nunca imaginei viver”, salienta. “Hoje me sinto mais segura após ter sido imunizada; mas ainda temo contrair, ficar assintomática e levar para o meu filho, por exemplo”, frisa.
E é justamente pensando nos outros que a Jana da UPA faz um apelo: “se cuide, cuide de quem você ama. Já vi filhos desesperados por ido a festas e contraído o vírus e passado aos pais, avós. Por isso peço: se cuidem. Quem tiver oportunidade de ser imunizado, não espere, não pense duas vezes: confie na ciência, tenha fé em Deus que teremos dias melhores sim, mas faça a sua parte usando máscara, higienizando as mãos e evitando festas”, pontua.
“A luta segue e não é por uma vida, é por todas”, finaliza a enfermeira.
P.S.: na sala em que Jana relembrou os mais de 460 dias na linha de frente estavam o Alex da UPA, o Matheus Freiria e a doutora Francieli que, incialmente também falaria, mas como tudo é feito de imprevistos e a saúde não pode esperar, teve que sair às pressas atender um pai e duas crianças que haviam acabado de sofrer um acidente. Ao ouvir o chamado da técnica de enfermagem, Francieli saiu como um furacão, correndo para atender. Jana olha e pontua:
“é o chamado da UPA”.