Do improviso à glória: como o Brasil virou o “melhor goalball do mundo

Fonte: Lincoln Chaves - Repórter da TV Brasil

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Entre as modalidades presentes no programa da Paralimpíada, o goalball é a única que não é adaptada. Trata-se de um esporte especificamente para cegos, criado em 1946 para reabilitação de veteranos da Segunda Guerra Mundial que perderam a visão.

A modalidade é uma das maiores apostas de medalha de ouro para o Brasil nos Jogos de Tóquio, no ano que vem. A seleção masculina lidera o ranking mundial e a equipe feminina é a atual terceira melhor do mundo.

Segundo a Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV), o goalball é a modalidade para cegos com mais praticantes no país. A estimativa é que de 600 a 700 atletas (entre homens e mulheres) sejam filiados e participem de torneios oficiais. A edição deste ano da Copa Brasil, como é chamado o campeonato nacional, reuniu no Centro de Treinamento Paralímpico, em São Paulo, 189 jogadores de 33 equipes separados em quatro divisões (séries A e B, masculino e feminino).

“Hoje o goalball brasileiro é referência mundial. E o mesmo acontece com o nosso campeonato. Não é à toa que, neste ano, teve até estrangeiro jogando aqui. Português, argentino”, afirma Leomon Moreno, atleta do Santos e da seleção masculina.

Leomon, aliás, é exemplo da relevância do Brasil no cenário internacional da modalidade. Quando não está jogando por aqui o brasiliense compete pelo Sporting (Portugal), que o apelidou de “Cristiano Ronaldo do goalball”. Além dele outros brasileiros têm sido chamados para disputar torneios pelo clube português, como Romário Marques (parceiro de Leomon no Santos), Ana Carolina Duarte (Santos) e Ana Gabriely Brito (Sesi).

Usando a criatividade

Um jogo é disputado em uma quadra com 9 metros de largura e 18 metros de comprimento, com uma bola específica (pesando 1,25 kg e com guizos no interior). A bola é arremessada a uma meta com 9 metros de largura por 1,3 metro de altura. Pouco mais de 30 anos atrás, quando tudo começou por aqui, o cenário era completamente diferente.

O goalball chegou ao Brasil em 1985 após o professor Steven Dubner, que trabalhava no Centro de Apoio aos Deficientes Visuais (Cadevi), em São Paulo, conhecer a modalidade nos Estados Unidos. No mesmo ano foi disputado o primeiro amistoso no país, entre Cadevi e Adevipar (Associação dos Deficientes Visuais do Paraná), no ginásio da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

“Não conhecíamos muito as regras, então fizemos [os gols] com dois bancos suecos deitados”, diz Mário Sérgio Fontes, atual coordenador de eventos da CBDV, e que em 1987 supervisionou o primeiro campeonato nacional de goalball, disputado em Uberlândia (MG).

Hoje presidente da CBDV e ex-coordenador do futebol de 5 brasileiro, José Antônio Freire foi jogador de goalball nos anos 90. Segundo ele, a dificuldade de acesso a equipamentos oficiais obrigava os praticantes a usarem a criatividade.

“Jogávamos em João Pessoa [PB] com uma bola de futebol de campo com guizos improvisados. A bola [oficial] era muito cara. Só tinha na Alemanha, então as equipes daqui tinham dificuldade”, lembra.

“Às vezes, colocava-se um saco plástico por cima de uma bola normal para simular o barulho [do guizo]. Cheguei a ver isso em aquecimento de jogo”, recorda Diego Colletes, técnico das equipes masculina e feminina do Sesi e que trabalha com a modalidade há mais de 20 anos.

Se com a bola até era possível dar um jeito de compensar as limitações financeiras, com outros equipamentos não era tão simples. Como o goalball reúne atletas com diferentes níveis de deficiência visual, todos usam óculos de proteção. A Federação Internacional de Esportes para Cegos (IBSA) tornou o uso do equipamento obrigatório, para garantir que todos os atletas disputem a partida em igualdade de condições.

“Os óculos mais baratinhos aqui no Brasil custam em torno de R$ 300. Eu não tinha um real para comer, imagina para comprar óculos assim? Eu não tinha tênis apropriado para jogar, então jogava descalço. Não tinha a roupa, aí jogava de regata. Não tinha joelheira, cotoveleira”, afirma Josemarcio Sousa, o Parazinho, autor de sete gols na vitória de 10 a 4 do Sesi sobre o Santos na final da Série A masculina da Copa Brasil.

Subindo o sarrafo

“Conheci o goalball em 2004, trabalhando no Lar das Moças Cegas, em Santos (SP). Acabei fazendo meu trabalho de conclusão de curso (TCC) sobre goalball. E não foi nada fácil. Você pesquisava na faculdade, visitava biblioteca e não achava quase nada. Até tinha alguma coisa no Google, mas pouco. Hoje está bem diferente”, diz José Mauro Neri, técnico do Santos.

Foi exatamente em 2004 que a modalidade deu o primeiro salto no país, com a classificação inédita de uma seleção, a feminina, para a Paralimpíada de Atenas, na Grécia. De lá para cá foram três pódios em Mundiais (terceiro lugar entre as mulheres em 2018, e dois títulos entre os homens, em 2014 e em 2018) e duas medalhas paralímpicas no masculino: prata em Londres 2012, no Reino Unido, e bronze na Rio 2016. Nos Jogos Parapan-Americanos, desde Guadalajara 2011, no México, o domínio brasileiro é ainda maior: seis medalhas, sendo cinco douradas.

Este salto coincide com a instituição da Lei Piva (10.264), de 16 de julho de 2001, que previa a destinação de 2% (2,7% a partir de 6 de julho de 2015) da arrecadação bruta das loterias federais em operação no país (descontadas as premiações) aos Comitês Olímpico do Brasil (COB) e Paralímpico Brasileiro (CPB). A entidade ligada ao paradesporto, que inicialmente tinha direito a 15% do valor repassado, teve a fatia aumentada para 37,04% há quatro anos. O CPB direciona esse investimento às modalidades, seja as que estão sob sua gestão (natação e atletismo, por exemplo), seja as administradas por outras confederações, como o goalball.

“A inclusão do paradesporto como um todo na Lei Piva trouxe uma mudança significativa. Hoje podemos dizer que o Brasil tem recursos para dar apoio às seleções nacionais de alto padrão e realizar treinamentos”, analisa Mário Sérgio Fontes, da CBDV.

“Não há como pensar em trabalho de alto nível, de alta qualidade, sem recursos financeiros para mantê-lo. E hoje, no país, os próprios atletas, não digo 100%, mas boa parte deles, que estão em nível de competição, recebem apoio financeiro de alguma forma, por lei de incentivo ou patrocinadores próprios”, completa.

 

Para Diego Colletes, do Sesi, o cenário que se desenhou para o goalball brasileiro no século XXI aumentou a exigência do alto-rendimento.

“Lá atrás o perfil dos jogadores não era verdadeiramente de atleta. Você via equipes que se juntavam para organizar uma ação fora da realidade do alto-rendimento. Mas os anos se passaram e os atletas foram entendendo a importância do dia a dia de treino para almejarem resultados”, destaca.

“Até alguns anos atrás o goalball era simples. Você via uma equipe e sabia que ela seria campeã. Hoje os jogos são disputadíssimos. A Copa Brasil deste ano foi surpreendente. Equipes das quais não se esperava tanto antes chegaram com ótimos resultados”, acrescenta Victoria Amorim, jogadora do Sesi e da seleção feminina. Ela foi campeã da Copa Brasil em decisão inédita e apertada, por 2 a 0, contra o Instituto de Educação e Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte.

O que não significa que o papel social do paradesporto tenha necessariamente ficado em segundo plano. Adilson Benedito, de 45 anos e que hoje defende o Instituto Athlon, de São José dos Campos (SP), sofreu um acidente em uma oficina mecânica que o fez perder a visão. Os gols que marcou ao perceber que só teria sucesso nas quadras de goalball se levasse a prática a sério foram além daqueles em que a bola toca a rede.

“Eu praticava o esporte, mas ainda tinha vício em bebida, cigarro e drogas. Isso me atrapalhou muito. Mas acreditei no trabalho. Larguei tudo que era ruim na minha vida. Confiei no projeto e hoje estou colhendo os frutos”, encerra Adilson, um dos destaques do Athlon na conquista do terceiro lugar na Copa Brasil.

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Fábio Lisboa

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