Um grupo de seis pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) e da Universidade de Brasília (UnB) divulgou nesta segunda-feira (20) pesquisa sobre a resistência de servidores federais às iniciativas antidemocráticas do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. As ações tiveram uma série de implicações para os órgãos públicos e, portanto, para o atendimento à população. Segundo o estudo, o governo aumentou o uso de instrumentos formais de repressão aos funcionários públicos e testou estratégias em certas organizações para replicá-las em outras, em caso de sucesso.
Publicado na Revista Brasileira de Ciência Política, o documento diz que os servidores saíram à frente, em um primeiro momento, pois contavam com a vantagem de conhecer a máquina pública. Nessa fase, o presidente da República e indicados agiam a partir das estratégias chamadas informais e coletivas, como são classificadas, entre outras atitudes, as críticas públicas a servidores.
Já entre os instrumentos formais de repressão estão os processos administrativos disciplinares (PAD). Com dados obtidos na Controladoria-Geral da União (CGU), os pesquisadores demonstram que, entre 2019 e 2021, foram abertos 171 PADs, uma média de 57 por ano. De 2014 a 2018, antes do governo Bolsonaro, o total foi de 128, uma média de 25,6 por ano.
O governo também fortaleceu o processo de militarização das instituições, que começou em órgãos ambientais, e diminuiu a autonomia dos servidores, com ferramentas como a Nota Técnica 1.556/2020, da CGU. A nota permitia que a administração pública federal adotasse punições contra servidores que fizessem, em redes sociais ou outros meios virtuais, críticas ao órgão ao qual estivessem subordinados. O entendimento é de que tinham de cumprir um “dever de lealdade”. O Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o Partido Verde (PV) contestaram a medida, levando a questão ao Supremo Tribunal Federal.
Outro instrumento de repressão foi transformar servidores em “bodes expiatórios”, uma vez que serviam de exemplo para mostrar o que aconteceria com os colegas caso se opusessem às ordens. Em relação a experimentos que o governo federal fez para verificar se obteria êxito com determinadas estratégias, os pesquisadores citam a restrição ao acesso do Sistema Eletrônico de Informações (SEI), de gestão de documentos e processos.
As estratégias formais são aquelas ligadas à prática institucional, ao uso de mecanismos oficiais e legais, como decretos e instruções normativas. Segundo uma das pesquisadoras do estudo, a professora da FGV Gabriella Lotta, são usados os aparatos da burocracia contra a própria burocracia. “Seja porque você acaba com os instrumentos, seja porque dá outra interpretação para eles e os reverte contra o servidor. Foi isso que a gente acabou identificando: o uso da máquina pública, ou tentando destruí-la, ou tentando reverter sua tônica de atuação em prol desse projeto autoritário que o presidente Bolsonaro estava buscando fazer”.
Por outro lado, existem as estratégias informais, que estão em interações cotidianas, como discursos, mensagens de texto e conversas informais. As estratégias também se dividem entre coletivas, quando atingem uma equipe, um setor ou organização, ou individuais. No início dos embates, os servidores optaram mais por manobras individuais, “especialmente de sabotagem e modificação do ritmo de trabalho (shirking). Essas prejudicavam as pautas governamentais de forma silenciosa e escondida, fora do radar da alta administração”, destacam os autores do estudo. Os servidores também se organizaram coletivamente a fim de levar as denúncias para fora dos órgãos públicos, por meio de depoimentos, cartas e abaixo-assinados, o que também consiste em estratégia informal.
Assédio
A pesquisadora Michelle Morais de Sá e Silva, da Universidade de Oklahoma, dos Estados Unidos, é autora de um estudo publicado no livro Assédio institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado no qual reuniu relatos de servidores da administração federal. Em entrevista, ela explicou que seu trabalho não tinha a meta de destrinchar o assédio cometido pelo governo, e sim identificar os valores pessoais dos servidores da administração pública federal, mas acabou tomando esse rumo.
“Ao contar sobre suas trajetórias e atuação em temas de direitos humanos, as pessoas iam relatando situações muito difíceis, de depressão, perseguição, relatavam muito medo. Isso fez com que a gente buscasse uma reflexão sobre a necessidade de registrar esses processos”, destaca.
Segundo ela, somente o fato de ver a instituição em que trabalhavam ser alvo de ataque foi motivo para servidores sentirem medo.
Afronta à educação
Um servidor da área técnica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) conversou, sob a condição de anonimato, com a reportagem da Agência Brasil, e relatou o que vivenciou no local. Ele afirma que os servidores, por terem estabilidade na função, impediram a prática de muitos abusos. “Isso era explícito. Aquela pessoa comissionada, que não era servidora, que estava ali de passagem, fazia tudo para implementar as diretrizes do presidente do Inep e, no limite, do governo federal. Toda a resistência que houve ali dentro foi do servidor estável, que tentava barrar essas decisões. E isso era feito em nível de reunião, de nota técnica, instrumentos em que a gente conseguia expor, com mais detalhes, as consequências do que estavam fazendo”, diz.
O Inep é ligado ao Ministério da Educação e responsável pelo Enem. Durante o seu governo, o então presidente da República Jair Bolsonaro chegou a dizer que iria mexer nas provas do exame. Diante das ameaças, servidores do instituto chegaram a entregar cargos e buscar transferência ou licenças.
Para se proteger dos chefes, os servidores de carreira do Inep procuravam se amparar na Associação dos Servidores (Assinep). A Agência Brasil procurou a Assinep para obter mais detalhes sobre possíveis ações movidas pelos funcionários, a fim de responsabilizar chefias do período Bolsonaro. A entidade não respondeu ao contato.
Conflitos na segurança pública
Embora não seja servidor federal, o policial civil Pedro Paulo Chaves Mattos, conhecido como Pedro Chê, diz que ele mesmo não teve chefias em seu encalço, mas percebeu como as relações se modificaram com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Petista, ele comenta que colegas sofreram perseguições, inclusive institucionais, e chegaram a ser mandados para outros setores, contra sua vontade. Como resultado, atingiram muitos deles a autocensura, citada pelos pesquisadores no estudo, ou o adoecimento mental, segundo Mattos.
“Teve caso de delegado dizendo para uma escrivã que ela teria que chegar uma hora mais cedo do que os outros, porque votava em Lula. Claro que ela não poderia chegar uma hora mais cedo, porque a delegacia estaria fechada, mas isso faz parte de um jogo de chantagem e abuso. Tem outros colegas que são remanejados no olho do furacão, em delegacias que a gente sabe que não têm nenhuma simpatia, porque são de esquerda”, exemplifica Mattos, que integra o Conselho Nacional de Policiais Antifascismo e atua no Rio Grande do Norte.
Uma colega transexual, servidora federal de uma das polícias, foi tirada do trabalho de campo e reposicionada em um cargo de setor administrativo, com a função de realizar atendimentos por telefone. Isso provocava constrangimento na policial, já que não era chamada pelo seu nome social, do gênero feminino. “Causou um dano emocional muito pesado, Ela era continuamente chamada de senhor, sistematicamente, todo dia. Há esse tipo de ataque, de pegar seu ponto fraco”, frisa o agente.
Polarização e recuperação
Especialista em estudos sobre a burocracia, Gabriela Lotta argumenta que o objetivo agora deve ser o de reaver o que foi perdido, “desde documentos, informação, memória, procedimento”, durante a última gestão do governo federal. “Acho que pouca coisa foi institucionalizada, que não permita uma reversão. Até porque o governo Bolsonaro, em termos de construção, fez muito pouco. A grande pauta foi a destruição”, diz.
Para ela, há outra questão “muito delicada, muito sensível”. “O governo Bolsonaro explicitou uma polarização, que talvez sempre estivesse ali e a gente não sabia, dentro da burocracia, mas que virou uma polarização quase inconciliável, neste momento. Acho que os ânimos estão muito aflorados, os servidores não conseguem mais trabalhar uns com os outros, tem muitas gente com problema de saúde mental, afastamento do trabalho por essas questões, desmotivada em ser engajada. Há um trabalho muito difícil aí, de reconstrução ou construção de uma unidade, que seja pró-missão organizacional, de construção de uma capacidade de trabalhar junto, que tem mais a ver com a dimensão de gestão de pessoas.”
A pesquisadora, porém, não sugere uma solução. “Mas não tenho dúvida de que essa é uma coisa que tem que ser feita. Acho que o que é mais perigoso é a polarização dentro da burocracia, e menos ao projeto bolsonarista”, complementa.
Outro lado
Procurada pela Agência Brasil, a assessoria de imprensa do ex-presidente Jair Bolsonaro disse, em nota, que os ministérios eram comandados por quadros técnicos. “Diretores e altos cargos das empresas públicas e mistas eram ocupados por renomados executivos de mercado. A Secom [Secretaria Especial de Comunicação Social do Governo Federal] era liderada por um técnico com mais de 20 anos de atuação em mídia”.
Fabio Wajngarten, ex-chefe da Secom, que responde atualmente pela assessoria de Bolsonaro, disse ainda que “em todo processo de mudanças drásticas, grupos saem em defesa do seu espaço”.
Edição: Graça Adjuto