O silêncio e o respeito que se seguem aos primeiros acordes de hinos nacionais em cerimônias e celebrações oficiais expressam a relevância simbólica dessas canções para os países. É preciso preparação e muita técnica para alcançar todas as notas e expressar a emoção do poema buscando sempre a reprodução fidedigna da música. Essa precisão combinada à emoção deve marcar a apresentação do Coral do Senado na sessão solene do Congresso para comemorar o Bicentenário da Independência, nesta quinta-feira (8), às 10h. O coral vai interpretar o Hino da Independência, que reproduz o contexto histórico do rompimento do vínculo de dominação colonial do Brasil com Portugal.
Diferentemente do Hino Nacional, o Hino da Independência é pouco conhecido pelos brasileiros. Com letra rebuscada (veja abaixo) que exalta a liberdade e a bravura do povo, sua execução ficou praticamente restrita ao período compreendido entre a Independência, em 1822, e a abdicação de D. Pedro I ao trono, em 1831.
A regente do Coral do Senado, Glicínia Mendes, conta que a pesquisa sobre a história do hino no Camões Instituto da Cooperação e da Língua, de Portugal, com a identificação da partitura original para as correções e aprimoramentos oficiais, foram essenciais na preparação do grupo. A partitura é a representação escrita de uma música por meio dos símbolos das notas musicais.
— É uma missão honrosa, pela oportunidade de externar respeito e amor por nosso país — afirmou Glicínia à Agência Senado. — Por outro lado, é grande a responsabilidade: envolve o treinamento dos cantores do Coral do Senado para que apresentem o hino de acordo com a forma mais fidedigna àquela concebida pelo compositor D. Pedro I — disse a regente, que está à frente do coral há 26 anos.
Nos últimos três meses, os 25 cantores intensificaram os ensaios da canção, que carrega na história de sua criação particularidades que ajudam a contar o processo de formação do Estado brasileiro.
Para a coralista Elizabeth Guimarães, ter conhecimento do contexto histórico é fundamental para inspirar o grupo na hora de cantar.
— A recomendação especial para cantar hinos nacionais é estar cheio de compreensão do fato histórico, entrar no clima e deixar-se levar pelas orientações e o expressar sensível e técnico da maestra — observou.
Presente aos ensaios que ocorrem duas vezes na semana, o músico Roberto Cantelli reforçou o coro dos que se inspiram na história da Independência do Brasil para execução perfeita do hino.
— A principal particularidade é estar ciente que se canta um hino relativo a um fato de extrema importância para o Brasil. A dificuldade é apresentar com todas as nuances de um hino, sejam elas de articulação correta das palavras ou da noção de sua linha melódica marcial — ressaltou.
O coralista Edilson Barbosa relatou a emoção de cantar o hino e disse que se inspira nos versos, sobre um país de povo heroico e livre, para pensar no que espera do Brasil nos próximos 200 anos:
— Imagino um Brasil igualitário em direitos, deveres e justiça para todos. Que nossa população entenda que somos soberanos, fortes e donos do nosso futuro.
Melodia de D. Pedro I
A canção tem letra baseada em poema de Evaristo da Veiga. Naquela época, o poeta e jornalista divulgou os versos como demonstração de seu apoio ao movimento separatista. O texto passou a ser chamado de Hino Constitucional Brasiliense. A popularidade desse poema fez com que ele fosse convertido em letra da melodia, esta composta pelo próprio D. Pedro I com influência dos seus professores de música, Marcos Antônio da Fonseca Portugal e Maurício Nunes Garcia.
A reprodução da melodia para a perfeita entonação de cada nota na apresentação do coral será de responsabilidade da pianista do grupo, Duly Mittelstedt.
— Estamos estudando técnicas aplicadas para buscar volume e articulação do texto, soando com bastante potência. Que o público possa assistir e acompanhar, ouvindo as letras com atenção, para uma ótima compreensão do texto — destacou a pianista.
De acordo com o consultor legislativo do Senado e professor de história Marcos Magalhães, D. Pedro I tinha uma “educação musical até certo ponto apurada” e o Brasil já se caracterizava por “uma tradição musical clássica muito forte, desde o barroco mineiro”, no século 18. Com essa influência cultural e munidos do sentimento de separação de Portugal, da necessidade de construção de unidade e de criação de simbologias que representassem a nação, nasceu o Hino da Independência.
— A composição musical do Hino da Independência ficou a cargo dele [D. Pedro I]. A letra, não: foi composta por Evaristo da Veiga. Letra que foi reconhecida muito tempo depois, porque inicialmente havia uma certa discussão sobre de quem era, mas um tempo depois Evaristo declarou isso no jornal em que publicava, e daí reconheceram a letra — explicou.
Magalhães observa ainda que o poema traz um caráter encomiástico (elogioso), reproduzindo a tradição poética do período colonial de transição ao Império. Via no investimento simbólico, segundo o professor, a intenção de colocar D. Pedro I como responsável pela Independência. Isso é destacado no hino e também na dupla comemoração da Independência: uma em 7 de setembro, dia da proclamação oficial, e outra no dia 12 de outubro, data do aniversário e coroação do imperador.
— Havia esse investimento dele no sentido de procurar já definir alguns símbolos, como as fitas verde e amarelo. Depois veio o aniversário dele, datas sugeridas como forma de solenizar uma identidade nacional brasileira separada da de Portugal. Mas isso não permanecerá, porque a República vai fazer um investimento muito maior com o 7 de setembro — destacou.
É possível notar na letra o convite à união pela Independência, conforme explica o professor, nos versos “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”, por exemplo. O hino conclama os brasileiros a lutar pela Independência e até morrer em prol dela. Mas a questão não era pacífica.
— A busca da Independência com a unidade do Império não foi uma questão tão simples assim. Ela se mostrou bastante ágil e rápida no caso da Região Sudeste e do Centro-Sul do Brasil com exceção da Cisplatina (atual Uruguai). A gente sabe que no Nordeste, passando por Bahia, Pernambuco e até no Norte, que tinham uma relação mais direta com Lisboa, as resistências se fizeram presentes — salientou.
Brava gente brasileira
Vale ressaltar ainda que trechos da letra do hino fazem referência a nossa própria adjetivação como “gente brasileira”. O que indica, segundo Marcos Magalhães, mais um recurso na tentativa de formação de identidade nacional que busca despertar o sentimento nacionalista, além de outros versos que trazem palavras e expressões como “Pátria”, “mãe gentil” e “resplandece a [nação] do Brasil”.
— Nós já podemos observar nesse período o primeiro prenúncio, “brava gente brasileira”, uma referência até ao próprio adjetivo “brasileira”, que começa a se afirmar nesse período como algo específico brasileiro. Ou seja, esse é um momento de formação do país como nação, de forma que uma identidade nacional anda pari passu com esse processo de formação de nação. E no plano musical, essa pode ter sido a principal manifestação — acrescentou.
Resgate
Após a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, e de sua ida para Portugal, o Hino da Independência deixou de ser tocado nas cerimônias e solenidades oficiais. Segundo Marcos Magalhães, a letra de exaltação ao imperador já não fazia mais sentido, frente à crise política e institucional provocada por seu império.
No entanto, em 1922, já na República, houve um resgate da execução do hino, em razão das comemorações dos 100 anos da Independência.
A celebração do bicentenário, neste ano, também buscou evidenciar a recuperação desses símbolos para torná-los mais conhecidos. A Comissão Interministerial Brasil 200 Anos, por meio do governo federal e com a parceria do programa Arte de Toda Gente, da Funarte e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), abre na quinta-feira, no Palácio do Planalto, a exposição Hinos do Brasil.
Serão disponibilizadas para conferência dos visitantes partituras históricas, como as originais dos Hinos Nacional, da Independência e da Bandeira. Essa será a primeira vez que os documentos serão exibidos em exposição itinerante.
Os manuscritos de hinos significativos para a história do Brasil ficam na Escola de Música da UFRJ e foram retirados pela primeira vez em abril deste ano para serem restaurados pelo Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte.
Confira a íntegra do Hino da Independência |
Já podeis, da Pátria filhos Ver contente a mãe gentil Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil Já raiou a liberdade Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil Brava gente brasileira! Longe vá, temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Os grilhões que nos forjava Da perfídia astuto ardil Houve mão mais poderosa Zombou deles o Brasil Houve mão mais poderosa Houve mão mais poderosa Zombou deles o Brasil Brava gente brasileira! Longe vá, temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Não temais ímpias falanges Que apresentam face hostil Vossos peitos, vossos braços São muralhas do Brasil Vossos peitos, vossos braços Vossos peitos, vossos braços São muralhas do Brasil Brava gente brasileira! Longe vá, temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Parabéns, ó brasileiro Já, com garbo varonil Do universo entre as nações Resplandece a do Brasil Do universo entre as nações Do universo entre as nações Resplandece a do Brasil Brava gente brasileira Longe vá, temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil
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