A adoção de operações financeiras nos moldes islâmicos exige adaptação da legislação nacional para que não haja tributação dupla sobre os ativos dessas transações, além do aprimoramento de tratados internacionais de comércio e investimentos mantidos pelo Brasil e outros países.
A avaliação foi feita, nesta segunda-feira (13), em audiência pública semipresencial da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) que avaliou mudanças na legislação brasileira como forma de permitir acesso a recursos financeiros islâmicos.
Representante-chefe para América Latina do First Abu Dhabi Bank, Ângela Martins, disse que as operações islâmicas são adotadas em muitos países, como o Reino Unido, e que seu emprego no Brasil exigiria a adequação da legislação fiscal.
— Existe um detalhe importante nas finanças islâmicas. Na maioria dos casos, existe compra e venda de ativo que acontece duas vezes. Na banca convencional, pede-se o financiamento concedido. No caso islâmico, normalmente a instituição financeira compra o ativo à vista e vende a prazo e faz um lucro. O grande desafio nas duas pernas é que, não havendo entendimento da estrutura fiscal, há dupla tributação, o que mata a operação no nascedouro. O que temos feito é capturar recursos e fazer as operações fora do Brasil, mas isso acaba privilegiando instituições brasileiras que têm representação fora do país. Há a necessidade de resolver essa questão fiscal para, quando se tiver a prática da operação islâmica, apenas uma perna seja taxada — afirmou.
Ângela ressaltou que a adaptação da legislação fiscal para permitir que operações islâmicas no mercado financeiro brasileiro exige o envolvimento do Banco Central, da Receita Federal e dos parlamentares, como forma de favorecer a aprovação de uma legislação específica que deixe claro, quando uma operação islâmica estiver em curso, a possibilidade de haver incidência de imposto de forma diferenciada.
— Em noventa por cento das operações islâmicas haverá a necessidade de compra e venda de ativo, haverá geração de valor agregado à sociedade, um princípio básico das finanças islâmicas. Não existe nenhum tipo de especulação financeira, nem pode haver, mas todas as operações são estruturadas de forma que o banco que estiver viabilizando a operação possa fazer lucro, que será compartilhado entre todos os participantes da operação, não havendo taxação dupla para não deixar a operação excessivamente cara —afirmou.
Mercado halal
Presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), Mohamed Hussein El Zoghbi, apontou o potencial do Brasil para a exportação de alimentos e a capacidade do país de se enquadrar às exigências da lei islâmica, o que favorece o mercado halal, que envolve produtos destinados ao consumo muçulmano.
— O Brasil é um parceiro comercial importante e pode se tornar eixo estratégico para emissão de produtos islâmicos no âmbito da América Latina. Do ponto de vista econômico, o mercado halal é importante para o Brasil, líder na exportação mundial de proteína animal, com destaque para a exportação de açúcar, minério de ferro, milho — afirmou.
Além de ressaltar que os investimentos estrangeiros podem contribuir para o desenvolvimento econômico brasileiro, sobretudo nas áreas do agronegócio e infraestrutura, o presidente da Fambras destacou que o sistema financeiro muçulmano segue rigorosos padrões e princípios éticos aplicados aos aspectos da vida.
— As operações financeiras islâmicas são a forma ética de financiar e investir, na qual as partes são parceiras, não concorrentes. São operações que prezam por serem justas para ambas as partes e não podem oferecer riscos desnecessários. Trabalhar na base da incerteza ou conter especulações, isso não é admitido. Precisam ser claras, transparentes e simples, não é possível cobrar juros, o que não significa que não sejam operações lucrativas. Como a base das finanças islâmicas tem outro patamar, não necessariamente os juros, os ganhos são compartilhados. O banco não usa seus recursos para favorecer qualquer movimentação financeira, também precisa fomentar oportunidades e agregar valor à sociedade — afirmou.
O presidente da Fambras destacou, ainda, que as finanças islâmicas estão presentes em diversos países, entre eles o Reino Unido, que conta com cinco bancos islâmicos, que emitem obrigações financeiras em conformidade com a xaria (sistema jurídico islâmico), além de Luxemburgo, Hong Kong, África do Sul e Nigéria, entre outros.
Aderência
Gerente da Superintendência de Desenvolvimento de Mercado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Cláudio Gonçalves Maes, disse que os produtos a serem contemplados com as finanças islâmicas devem ter aderência ao valores e ideias de quem participa desse tipo de operação.
— Os agentes de mercado precisariam se certificar de que as pessoas que estão comprando as finanças islâmicas sejam aderentes àquela cultura e àquela necessidade. É uma nova fronteira a ser explorada e existe interesse em explorar, o mercado brasileiro é profundo bastante para assimilar novas soluções — afirmou.
Competitividade
Chefe adjunto do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central, Renato Kyiotaka Uema, manifestou apoio a iniciativas que fomentem a competitividade e a entrada de investimentos diretos no Brasil que agreguem valor à sociedade.
— O assunto é muito novo, a gente falar de finanças islâmicas não deixa de ser uma revolução em termos de sistema financeiro. Algumas questões das finanças islâmicas já foram objeto de questões acadêmicas, mas, do ponto de vista da regulação, nunca foram avaliadas com profundidade para inserção no sistema brasileiro — afirmou.
Uema disse que as finanças islâmicas invertem a lógica dos bancos tradicionais, de agregar valor e receber remuneração não pelos juros, mas pela agregação de valor que houve na ponta da operação financeira.
— Talvez a questão regulatória do Banco Central seja um último passo nesse processo. Há outros entraves relevantes para possibilitar esse tipo de estruturação no sistema brasileiro, questões relacionadas às leis tributárias, questões societárias — afirmou.
Princípios
Ex-procurador do Banco Central, consultor legislativo da Câmara dos Deputados e autor de tese de doutorado sobre finanças islâmicas, Fabiano Jantalia, apontou que, no caso de adequação, as operações financeiras tradicionais devem levar em conta os princípios da fé islâmica, que condenam o ganho e a especulação excessivos, além da visão diferenciada dos intermediários financeiros, que, no Islã, não são apenas provedores de recursos, mas partícipes do negócio.
— Enquanto o banco ocidental apenas provê o risco e, se a operação quebrar, continua credor, na lógica da operação islâmica isso não acontece. O banco toma prejuízo na proporção do que colocou naquele negócio. As finanças islâmicas não são só uma forma disfarçada de fazer a mesma coisa, como eu já ouvi ‘ah, essa é uma cobrança de juros disfarçada’. Não. Isso é muita superficialidade — afirmou.
Proponente do debate, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) reconheceu a relevância e a inovação proporcionada pelas finanças islâmicas, debatidas pela primeira vez no Senado, embora venha sendo discutida desde 2019 no Grupo Parlamentar Brasil-Países Árabes, o qual preside.
O senador apontou a importância de manter debate sobre a matéria, com a adoção de um arcabouço sólido que seja capaz de fornecer segurança jurídica e flexibilidade para atração de investimentos, modernização e desafios.