A Comissão de Segurança Pública (CSP) realizou nesta quinta-feira (13) audiência pública interativa para ouvir familiares e defensores dos presos nos atos de 8 de janeiro. Eles apontaram a ocorrência de ilegalidades e de violações de direitos humanos na detenção dos manifestantes nas penitenciárias da Papuda e Colmeia [feminino], em Brasília. As irregularidades e as violações, algumas cometidas pela Polícia Federal (PF), segundo eles, afrontam os direitos mais elementares e dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, além de outros acordos e tratados internacionais sobre direitos civis e políticos dos quais o Brasil é signatário.
Proponente do debate, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) expressou solidariedade aos participantes da audiência pública e disse que os manifestantes passam por situações “vexatórias” nas prisões. O senador apontou a existência de uma “inversão completa de valores” e disse que está havendo a aplicação de dois pesos e duas medidas pelo Poder Judiciário na manutenção da prisão dos manifestantes, que qualificou como “presos políticos”. Comparou o caso deles ao do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, “condenado a 425 anos de prisão e depois de ter permanecido apenas seis anos presos, foi libertado pela Justiça para cumprir pena domiciliar”.
—Essas pessoas [os manifestantes] não estão esquecidas. O Estado Democrático de Direito precisa voltar. Nós vamos trabalhar com o limite de nossas forças para isso —prometeu Girão.
Ao defender a justiça e o restabelecimento da democracia no Brasil, Girão comunicou que irá apresentar denúncia formal à Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de uma comitiva de parlamentares e de advogados que irão a Nova York em 21 de julho.
Girão, com apoio do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), também voltou a defender a instalação de processo de impeachment contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, por suposta militância política e ativismo judicial. Lembrou que pedido nesse sentido, com a assinatura de seis senadores, já foi encaminhado à presidência do Senado em novembro de 2022.
—Existe uma subserviência dessa Casa e isso está prejudicando a democracia no Brasil. Nós temos uma pseudodemocracia, já caindo aí por um campo muito perigoso de ditadura. A gente está vendo coisas inimagináveis —afirmou.
Avaliação dos senadores
O senador Magno Malta (PL-ES) ressaltou que visitou e conviveu com os manifestantes do 8 de janeiro “de forma intensa” e apontou “a força espiritual daquela gente que ainda confia na justiça desse país e na justiça de Deus, presa pelo crime de amar a pátria, seus filhos, sua fé, seus valores e seus princípios”.
— Nosso ordenamento jurídico, se existe, está nas nuvens —avaliou.
Emocionado, o líder da oposição, senador Rogério Marinho (PL-RN), não segurou as lágrimas. Afirmou que o Brasil vive um momento muito desafiador “que nos cobra atitude e inteligência”.
—Temos que ter resiliência, planejamento, estratégia. Precisamos desmistificar o que é colocado como lugar comum: uma estratégia deliberada de desumanizar aqueles que pensam diferente. Nós estamos relativizando a democracia, a inviolabilidade dos mandatos, a Constituição, os direitos humanos, o ordenamento jurídico, os valores. Há uma política de cancelamento das pessoas que ousam desafiar o sistema — afirmou Marinho, ao lado do seu pai advogado, da OAB do Rio Grande do Norte, presente à audiência.
O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) criticou a esquerda e a adoção de narrativas para “manietar a população”.
—No dia 8 de janeiro tivemos uma manifestação contra o governo que se instaurou, uma manifestação normal e que, lamentavelmente, terminou, por ação de alguns, num quebra-quebra. Dizer que aquilo foi uma tentativa de golpe é uma narrativa das mais extremas possíveis. O pior ainda é a história que temos visto na CPMI da minuta do golpe. Onde já se viu golpe com minuta? Esse é o escândalo do país hoje e que não podemos aceitar, temos que nos contrapor—ressaltou Mourão.
O senador Marcos Rogério (PL-RO) apontou a ocorrência de violações nas prerrogativas da própria advocacia. Ele disse que é preciso a individualização da conduta, em cumprimento ao próprio Estado de Direito.
— Vivemos o apagão de garantias no Brasil, abusos, atropelos que, na verdade, estão se materializando de maneira mais escandalosa agora. Mas, na verdade, o que estamos vendo hoje foi a relativização diante do tempo daquilo que não se podia relativizar. Hoje não há institucionalmente uma postura de enfrentamento porque se flexibilizou na origem. Hoje estamos vivendo esse drama. Talvez o dano mais grave que estejamos presenciando agora não é o que está acontecendo com essas pessoas que estão presas, mas é o dano ao Estado de Direito. Tem alguns dizendo “a lei sou eu”, a Constituição sou eu”. O que nós estamos vendo hoje é algo que nos entristece muito, o apagão constitucional, legal, das tradições jurídicas, da segurança jurídica, do juiz natural, é o preso que não e ouvido pelo seu julgador. O que é que é isso? —questionou Marcos Rogério.
O senador Cleitinho (Republicanos-MG), disse que segue a Bíblia, segundo a qual “a verdade anda tropeçando no tribunal e a honestidade não consegue chegar até lá”.
—Está acontecendo uma injustiça total com milhares de brasileiros. Quem quebrou vai ter que pagar, o país nosso está virando de cabeça para baixo, a gente tem que afastar o errado, muito disso vem do STF. O Senado tem a competência de fiscalizar o STF —afirmou.
“Torturas e castigos”
Presidente da Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de janeiro, Gabriela Fernanda Ritter, cujo pai está entre os detidos, apontou o que considera a prática de torturas, castigos e métodos tendentes a anular a personalidade dos manifestantes, assim como a gravidade de medidas cautelares aplicadas a alguns detidos, como o uso de tornozeleira eletrônica. Ela também exibiu vídeos, laudos e perícias forenses como forma de comprovar as irregularidades praticadas contra os manifestantes detidos, que incluem mães com filhos menores, idosos com comorbidades e até animais de estimação que acompanhavam seus tutores na manifestação de 8 de janeiro.
—Nossos familiares que vieram a Brasília não tinham essa intenção de vandalizar. Mas queremos que eles tenham direito à defesa, e que paguem dentro das proporções dos crimes que cometerem, não com alegação de tentativa de golpe de Estado no país. Precisa individualizar as condutas e punir quem de fato cometeu as irregularidades. Não existe nada que desabone a conduta de nossos familiares para que estejam seis meses presos. A verdade vai aparecer, como já está aparecendo nos depoimentos, e a gente se pergunta porque essas pessoas ainda continuam presas — afirmou.
Gabriela, que apresentou relatório atualizado de 53 páginas com as principais violações, ressaltou que os manifestantes presos são trabalhadores que pagam seus impostos e são pais de família, o que não poderia justificar a detenção.
—Não estou falando de pessoas perfeitas, todos nós erramos. Mas são pais de família, réus primários que nunca deveriam estar lá. A maioria não tem antecedentes criminais, não são um perigo para a sociedade, não é verdade que eles representam uma ameaça. Muitos que cometeram crimes gravíssimos e hediondos estão soltos. Nós não somos números de uma ação penal onde está tudo generalizado, somos pessoas, somos pais de família—defendeu.
“Cenário de guerra”
Representante dos advogados dos processados pelos atos do dia 8 de janeiro, Carolina Siebra apontou “trabalho árduo” para obtenção dos autos de prisão, os quais, segundo ela, apresentavam ausência de informações sobre os detidos. Ela também afirmou que havia um “cenário de guerra” na Colmeia, com a ocorrência de horários incertos para atendimento às clientes detidas no presidio. Denunciou também a ocorrência de “absurdos e aberrações jurídicas” nos processos a que os detidos respondem na Justiça.
— Existe uma resolução 213, de 2015, do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que diz que o preso tem que ser conduzido a um juiz para que ele verifique a legalidade da prisão. O assistido tem que ser ouvido pelo juiz que irá julgá-lo e não foi isso o que assistimos. No caso da minha assistida, o juiz lia um script, ele lia, nem decorou, e no final fazíamos os pedidos os mais diversos de liberação e o Ministério Público se manifestava também lendo um script. Nós temos casos em que o Ministério Público nem sequer leu, mas botou o vídeo, e a gente viu o maior absurdo, aberração jurídica, e a gente não viu a OAB falar nada —afirmou.
Carolina apontou ainda a “falta de humanização no momento das prisões” e disse que a falta de individualização das penas “faz com que a gente coloque todo mundo na mesma panela e bata aquele caldo ali e vai todo mundo nesse comboio”. A representante dos advogados dos manifestantes processados afirmou que a Constituição está sendo “ usurpada e ferida de morte”, e que a defesa dos manifestantes não está sendo ouvida pelas autoridades do Judiciário, as quais deveriam agir com “imparcialidade”.
—Até hoje a gente não tem o laudo de corpo de delito que os detidos fizeram no IML. A gente não tem acesso a isso, a gente não sabe mais o que é um ato antidemocrático, porque a gente não sabe mais o que é verdade ou mentira. Existe uma balança que pesa mais para um lado e não quero acreditar que isso seja por cunho ideológico. A Constituição está sendo usurpada, está sendo ferida de morte, ela é conhecida como Constituição cidadã porque ela veio para pôr fim ao autoritarismo, e ela está sendo rasgada—argumentou.
“Superlotação”
Subdefensora pública-geral do Distrito Federal, Emmanuela Saboya disse que há superlotação nos presídios “desde os primeiros dias de detenção”. Ela citou a ocorrência de “graves problemas psiquiátricos” em muitos detidos que se encontram distantes de seus familiares.
—A Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Custódia, vai aos dois presídios desde os primeiros dias de detenção. Ela não está na defesa legal do presos porque os crimes imputados são federais e a competência é da União. Fizemos relatório com fotografias, principalmente sobre a questão da alimentação dos presos. Estive dentro do presidio feminino, existe uma superlotação desde os primeiros dias de prisão. Em cela para oitos pessoas existem 16. Elas têm que dormir no chão. Vi jovens de 30 anos, com problemas cardiorrespiratórios por alergia à alimentação, terem convulsões. A gente já viu muita coisa acontecendo lá. A Defensoria Pública busca a humanização dos presos. Eles não são números, a gente nota que a maioria deles está bastante assustada. Há muitas idosas no presidio feminino—relatou.
“Ameaça à democracia”
Representante da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Distrito Federal e ex-diretor de Comunicação Social do Senado, o jornalista Armando Sobral Rollemberg disse que o 8 de janeiro foi “um momento preocupante que representou ameaça clara à democracia”.
—O bojo do movimento era golpista. Tentou-se desmoralizar o sistema eleitoral brasileiro, pelos quais deputados e senadores foram eleitos. É claro que cada um pode ter opinião diferente. A Constituição de 1988, que nos rege, diz lá “a independência e a harmonia entre os Poderes”. A escolha do ministro do Supremo passa pelo Senado. Na visão da ABI, houve um momento que não podia passar em branco, tinha que haver um momento de cobrança daquilo e está tendo. Alguns podem divergir, mas o fato é que a pregação contra o regime instituído, assegurado pela Constituição, foi evidente. E me desculpe, mas houve um agente catalisador disso tudo, e o agente catalisador, por coincidência, foi o presidente da República. Ele convidou 120 embaixadores, e isso é muito grave, para desqualificar o sistema eleitoral brasileiro. As coisas estão sendo insufladas. Como é que o Exército brasileiro fica complacente com aquele acampamento sem sentido nenhum do ponto de vista das Forças Armadas brasileiras? —perguntou.
A fala de Rollemberg, a única dissonante na audiência da CSP, provocou reações furiosas do público presente, exigindo intervenção do senador Malta, que estava presidindo os trabalhos. O senador conseguiu acalmar a plateia e o representante da ABI pode continuar com a sua exposição, criticando a postura contrária dos manifestantes do 8 de janeiro ao regime democrático.
—Não houve nada na História política brasileira tão grave como isso, a não ser o golpe militar de 1964. Foi tudo articulado, foi tudo combinado, eu poderia apresentar mil imagens, mil depoimentos da turma que depredou [agindo de forma] orgulhosa. E essa história de pregar o fim do Supremo? Grande parte desses depoimentos nas redes sociais já pregava isso. A democracia tem um alicerce, um cidadão, um voto. E o voto do negro vale o mesmo que o do branco, o do evangélico vale o mesmo que do católico, e assim por diante. E o que é que precisamos na democracia? Liberdade de organização partidária, liberdade de expressão e transparência. A nossa democracia é imperfeita porque os brasileiros ainda não têm a oportunidade de ter educação de qualidade para todo mundo, saúde de qualidade para todo mundo. Estamos aqui discutindo esse fato enquanto temos 33 milhões de brasileiros passando fome. É a democracia que tem que ser aprofundada. Lamento o sofrimento dos manifestantes do 8 de janeiro, a ingenuidade de alguns, mas temos que ter responsabilidade porque é a Constituição que está em jogo, é o regime democrático que está em jogo. E quem é de bem tem que zelar pela democracia, pelo cumprimento da lei, não pode sair agora pregando, direta ou indiretamente, o golpe. Desculpem se desafinei o coro dos contentes, mas estou aqui manifestando a posição majoritaríssima dos jornalistas brasileiros —afirmou.
Resposta à ABI
Após a fala de Rollemberg, Malta passou a palavra ao senador Flávio Bolsonaro, que contestou o representante da ABI.
—Depois de ouvi-lo, chego a conclusão que sabedoria não tem a ver com o tempo que você viveu. O senhor está tendo prova de democracia, tendo em vista que os participantes [da audiência pública] foram democratas. Falta visão para muitas pessoas enxergarem o todo. Bolsonaro sempre defendeu eleições transparentes e limpas muito antes de ser presidente da República. O senhor vir dizer que isso tudo foi planejado, um ato de golpismo. Se tivesse que dar golpe, Bolsonaro teria dado quando estava na cadeira. Ia dar golpe pelo whatsapp? Essa é a essência da esquerda brasileira, achar o que é melhor para a sua vida ou não. Hoje até cantar o hino brasileiro em sala de aula virou um ato antidemocrático. Qual foi a censura que o presidente Bolsonaro implantou? Hoje estamos vendo a censura, e a ABI não fala nada – concluiu, citando o caso da Jovem Pan
O representante da ABI voltou a ressaltar que não defendia o atual governo, mas o regime democrático.
—O presidente Jair Messias Bolsonaro foi o agente catalisador, gerou esse paroxismo, estou aqui para defender a democracia, em nome da ABI— reiterou.
Malta contestou Rollemberg. Disse que “o catalisador era o presidente Luís Inácio Lula da Silva por estimular e abraçar ditadores, por fazer as nossas Forças Armadas dar continência para ditador, tudo tem um agente catalisador”.