*Joana, de 35 anos, se viu ameaçada mais uma vez pelo ex-companheiro que, além de não aceitar o término do relacionamento, ainda violou a medida protetiva que ela tinha contra ele, pela qual o agressor não deveria se aproximar dela.
No dia 29 de dezembro do ano passado, ele foi preso pela Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Várzea Grande após a apuração dos crimes praticados contra a vítima. A delegada titular da unidade, Mariell Antonini, verificando que as medidas protetivas se mostraram ineficientes, representou pela prisão preventiva, que foi deferida pela Justiça. Desde que a vítima divulgou via rede social o pedido de ajuda, a Polícia Civil e a rede de acolhimento de Várzea Grande se mobilizaram para prestar atendimento à mulher que se apresentava em situação de vulnerabilidade.
Em São José dos Marcos, na região oeste do estado, *José ateou fogo na casa da ex-companheira em setembro do ano passado. Além do crime de descumprimento de medida protetiva que estava em vigência, ele ameaçou a ex-mulher e provocou o incêndio em casa habitada. A prisão foi representada pela Polícia Civil e no início deste mês, ele foi preso. O suspeito tinha passagens anteriores por violência doméstica contra a ex-companheira quando cometeu os crimes que motivaram a prisão.
Durante o ano passado, a Polícia Civil de Mato Grosso registrou 1.084 comunicações de descumprimento de medidas protetivas de urgência, conforme dados do Sistema de Registros de Boletins de Ocorrências (SROP), que constam em um estudo realizado pela Diretoria de Inteligência da instituição. Os registros foram efetivados em delegacias da Polícia Civil e também pela Polícia Militar em diversos municípios do estado.
O descumprimento da medida protetiva é crime previsto na Lei 13.641/2006 (Lei Maria da Penha), conforme o acréscimo do dispositivo do Art. 24-A, em 2018, que estabelece que a pessoa que descumprir a decisão judicial pode pegar uma pena de detenção de três meses a dois anos. A lei prevê ainda que o descumprimento enseja prisão em flagrante delito e somente a autoridade judicial poderá conceder fiança. A partir da comunicação da vítima sobre o descumprimento da medida protetiva, a delegacia da Polícia Civil instaura um novo inquérito policial para que o agressor responda por mais esse crime.
A análise, realizada a partir de dados do ano passado, traçou o perfil de vítimas e autores no universo de boletins registrados. O estudo traz também as providências tomadas pelas Delegacias da Polícia Civil de Mato Grosso sobre os registros efetuados, o que corresponde a 94%
de retorno policial nesses casos, um índice que reforça a confiança das mulheres quanto ao acionamento do Estado e da Polícia como uma ou a primeira porta de acesso aos serviços públicos.
No universo dos boletins registrados sobre o crime, em 41% deles as providências tomadas foram procedimentos de flagrantes, o que corresponde a 449 prisões. Já em 53% dos boletins registrados sobre descumprimento de medidas protetivas, as unidades policiais instauraram inquéritos para apurar o delito, o que ocorreu quando não houve prisão em flagrante ou a denúncia foi feita após o fato.
A medida protetiva foi criada para ter efeitos pedagógicos nos agressores, pois muitos respeitam e não transgridem as determinações judiciais de não aproximação das vítimas e afastamento do lar, pela possibilidade de prisão em flagrante. Contudo, muitos agressores não se importam com as sanções da lei, descumprem as medidas e colocam em risco a integridade das vítimas, sejam elas companheiras e filhos.
Perfil das vítimas
Em 95% dos boletins registrados predominam vítimas do sexo feminino. O restante, 5%, o levantamento aponta que parte está relacionada a crianças e adolescentes do sexo masculino, que acabam se tornando vítimas da violência intrafamiliar, uma vez que as agressões praticadas contra as mulheres no ambiente doméstico, em muitos casos, são estendidas aos filhos. Essa fatia também pode estar relacionadas a medidas descumpridas no âmbito de relações homoafetivas, uma vez que a legislação prevê, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal que reconheceu em 2011 a união homoafetiva como entidade familiar, abrindo possibilidade para aplicação de benefícios da Lei Maria da Penha em casos que figuram duas pessoas do sexo masculino.
Está na faixa etária entre 30 e 39 anos a maior parte das vítimas que sofreram violência e denunciaram o descumprimento de medidas protetivas de urgência (400 vítimas), seguidas de jovens com idade entre 18 a 29 anos, com 365 vítimas. São mulheres em fase produtiva, econômica e reprodutiva.
O levantamento aponta ainda um percentual de crianças e adolescentes entre as vítimas, incluídas como vítimas da violência que ocorre no núcleo familiar, uma vez que as agressões sofridas pelas mulheres também são direcionadas aos filhos, independente do sexo. Além de presenciar brigas entre os pais, os filhos são afetados psicologicamente e agredidos fisicamente, em algumas situações. Já nas adolescentes, o estudo considera a existência de um contingente de meninas em relacionamentos afetivos e sexual que sofre violência de seus parceiros, na faixa etária entre 12 e 17 anos.
Em relação à escolaridade das vítimas, entre os registros que continham essa informação, 10% delas estudaram até o ensino médio, seguida de mulheres com formação superior (7%) e ensino fundamental (6%), demonstrando que a violência feminina está distribuída e independe do nível cultural e socioeconômico.
Mulheres solteiras e separadas compõem o estado civil das vítimas nos boletins cujas informações foram preenchidas, o que representa 41% delas.
A delegada titular da unidade especializada de defesa da mulher na Capital, Jozirlethe Magalhães Criveletto, considera que a análise demonstra em quais frentes a segurança pública precisa dar mais enfoque e as ações que precisam ser implantadas visando a não reincidência dos casos de violência doméstica e, em última análise, a prevenção do feminicídio.
“Não podemos deixar de considerar que a predominância do machismo estrutural ainda alavanca os registros dessas ocorrências. É sabido que muitos agressores praticam novos delitos contra as vítimas assim que ficam cientes da denúncia e, em muitas ocasiões, a vítima sequer procura a Delegacia novamente, por medo de sofrer novas agressões e até a morte. Portanto, ainda que as vítimas tenham conhecimento dos seus direitos, já conheçam os canais de denúncia e, inclusive tenham buscado essa ajuda, no caso do descumprimento da medida ainda temos as subnotificações, pois após novas ameaças por terem requerido as medidas, simplesmente se calam, ou fazem até pior, solicitam o arquivamento das medidas. Fomentar o conhecimento da população feminina a respeito da existência desse crime e a importância do registro pode fazer toda a diferença no desfecho de um ciclo de violência”, aponta Jozirlethe.
A partir da modificação da Lei 11340/06 inserindo o crime de descumprimento da medida e as consequências trágicas que causaram esse descumprimento, a Delegacia da Mulher de Cuiabá adotou imediatamente novo protocolo de atendimento e distribuição para esses registros.
“A partir de então, todos os casos de descumprimentos de medidas registrados que se referem a risco para a vida da vítima ou sua parentela, são imediatamente encaminhados ao Poder Judiciário e Ministério Público para conhecimento, mesmo que não estejam com representação pela prisão preventiva do autor. A seguir, são distribuídos com prioridade e instaurados também com prioridade visando a imediata investigação e todo o apoio a essa vítima de violência para que ela se sinta segura”, explica a delegada.
Outra atividade desenvolvida esse sentido pela DEDM de Cuiabá é a operação Pró-empática que reúne parceiros como a Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar e o Espaço da Mulher do Hospital Municipal de Cuiabá para levar amparo social e atenção a mulheres vítimas de violência doméstica que sofreram desccumprimento de medidas protetivas. O trabalho integrado e de cunho preventivo realiza visitas domiciliares e com o apoio da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de Cuiabá forma uma equipe multidisciplinar levando acolhimento e informações e realizando encaminhamentos e proteção às vítimas de violência doméstica.
*Nomes sáo fictícios a fim de preservar a identidade das vítimas