No último dia 27 de março, a Fundação Cultural Palmares foi cenário de um encontro marcante. O evento “O Brasil Quilombola” reuniu lideranças quilombolas, representantes institucionais e pesquisadores para celebrar o lançamento da publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com os dados do primeiro Censo da População Quilombola. A divulgação desses números representa um avanço histórico no reconhecimento dessas comunidades, que há séculos lutam para afirmar sua existência no país.
O censo surge como resposta a uma demanda antiga dos movimentos sociais e das lideranças quilombolas, que sempre reivindicaram visibilidade para suas histórias, modos de vida e demandas específicas. Júnia Quiroga, representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), trouxe ao evento uma reflexão que simbolizou esse momento: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.” A metáfora expressa o longo percurso de luta para alcançar direitos e reconhecimento. As conquistas atuais resultam de processos históricos que, por vezes, permanecem ocultos sob o peso da invisibilidade. Para as comunidades quilombolas, a publicação do censo é um ato de afirmação, um passo importante para transformar histórias de resistência em políticas concretas.
Um retrato inédito da população quilombola
Os dados apresentados pelo IBGE rompem com a ausência de informações oficiais sobre uma parcela significativa da população brasileira. Mais de 1,3 milhão de quilombolas vivem em cerca de 1.700 municípios. Pela primeira vez, essas comunidades são mapeadas com precisão, o que permite dimensionar sua presença no território nacional. Marta Antunes, diretora de pesquisa do IBGE, ressaltou a relevância desse registro: “O censo nos permitiu ver o que antes não tinha forma oficial. Agora sabemos quantos são, onde estão e como vivem. Isso muda a forma de pensar as políticas para essas comunidades.”
Esse conhecimento concreto abre novas possibilidades para a construção de políticas públicas mais alinhadas com a realidade quilombola. Até então, a ausência de dados dificultava a criação de iniciativas específicas e adequadas às demandas dessas populações. Ao registrar números e transformá-los em informações acessíveis e úteis, a publicação fortalece o protagonismo das comunidades e assegura que seus direitos não permaneçam apenas no discurso.
Luta por reconhecimento e direitos
O coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Arilson Ventura, afirmou que o censo não apenas registra a presença quilombola, mas também reforça a luta por direitos. “Ter esses números é um passo fundamental para cobrarmos que as políticas públicas finalmente contemplem as demandas dos quilombolas. A resistência que herdamos de Zumbi dos Palmares está viva. E agora temos mais um instrumento para seguir em frente”, declarou.
Ventura destacou que, embora o levantamento seja uma conquista, ainda há um longo caminho pela frente. A realidade quilombola permanece marcada por dificuldades no acesso à terra, saúde, educação e infraestrutura. O reconhecimento estatístico se mostra fundamental, mas precisa se traduzir em ações concretas que garantam dignidade às comunidades. Ao registrar a presença quilombola, o censo também documenta a dívida histórica que o Estado brasileiro ainda precisa enfrentar.
Compromisso com a história e o futuro
Para o presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues, o censo representa uma reparação simbólica e prática. Ele destacou que o Brasil, ao reconhecer a população quilombola em seus números oficiais, dá um passo necessário para corrigir uma lacuna histórica. “O Brasil sempre teve uma relação ambígua com sua ancestralidade negra. Ter esses números registrados não é apenas estatística; é uma declaração de que essas comunidades existem, resistem e têm direito a políticas que atendam suas necessidades reais”, afirmou.
A publicação lançada pelo IBGE, disponível em formato PDF, oferece um panorama abrangente sobre a distribuição geográfica dos quilombolas, além de dados sobre faixa etária, divisão por gênero e condições sociais e econômicas. Organizado de forma clara e acessível, o documento dialoga com quem busca compreender as realidades quilombolas e, sobretudo, promover mudanças a partir dessas informações.
O evento “O Brasil Quilombola” não se limitou à celebração de um marco estatístico. Refletiu um movimento coletivo para transformar visibilidade em direitos, presença em políticas públicas e história em dignidade. As lideranças quilombolas presentes destacaram que os dados do censo fortalecem suas vozes e que, a partir desse reconhecimento, esperam que o Estado brasileiro finalmente cumpra seu papel de garantir condições de vida dignas às comunidades.